Na lógica aceita por parte dos analistas e do meio político, controlar as finanças públicas é “ortodoxo” e “contrário aos interesses da população”. No sentido oposto, políticas expansionistas seriam positivas. Foi com base nessa filosofia que, em 2016, chegamos a uma situação dramática e a dívida bruta acabou escalando até, na época, 70% do produto interno bruto (PIB), sendo hoje ainda maior (79 %). É revelador de nosso atraso que seja preciso voltar a tratar de questões que deveriam ter sido superadas há décadas. Como dizia Nelson Rodrigues, “não há nada mais difícil e cansativo do que demonstrar o óbvio”.
Em 1998 o Brasil bateu na “marca do pênalti” da moratória da dívida pública. Em 1999 o País fez um ajuste primário de 2,8% do PIB e, superado o tumulto inicial da desvalorização, entre o primeiro trimestre de 1999 e o mesmo período de 2001 – antes de São Pedro provocar a necessidade do racionamento de energia elétrica – o País cresceu ao ritmo anualizado de 4%, na base da recuperação da confiança. Em 2001-2002 a confiança desapareceu, depois Lula assumiu, aumentou o superávit fiscal primário e entre 2003 e 2010 o Brasil cresceu a uma taxa média de 4,5% ao ano, com superávit primário médio de 3,1% do PIB. Quando o desleixo fiscal e a crise política causaram nova crise e mergulhamos numa espiral de encolhimento de 3,5% anualizados nos oito trimestres consecutivos entre 2014 IV e 2016 IV, o governo teve de aprovar o teto do gasto público para o período 2017-2026, e na esteira dessa promessa a economia se acalmou depois de 2016. Diante disso, quem assiste ao debate em que a nossa heterodoxia clama contra o “austericídio”, dando a entender que o rigor fiscal equivale a um suicídio nacional, tem o direito de perguntar: qual é o problema com a austeridade?
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Se a ideia de que a austeridade foi um fracasso no Brasil se revela divorciada dos fatos, o mesmo pode ser dito acerca do debate referente a movimentos similares em outros países. Em 2008 estourou uma grave crise nos mercados internacionais, após a quebra da Lehman Brothers, em setembro daquele ano. Em 2009 o PIB dos EUA caiu 3% e o da zona do euro, a uma taxa da ordem de 5%. Se nos EUA uma série de medidas permitiu uma recuperação que, embora lenta, não demorou muito a se iniciar, na Europa os efeitos colaterais revelaram-se mais profundos. De qualquer forma, as iniciativas, de modo geral, foram bem-sucedidas, ainda que não no caso da Grécia, que, em razão do acúmulo de distorções e das insuficiências da sua economia, conservou a estabilidade de preços e se manteve na zona do euro, mas demorou muito a se recuperar. No caso dos outros países, porém, a recuperação foi visível após o esforço inicial. Tanto na Irlanda como nos países da Península Ibérica, os resultados econômicos de 2014-2018 foram substancialmente melhores que os dos anos anteriores. Em especial na Espanha, que implementou um ajustamento clássico by the book, com reforma trabalhista que flexibilizou o mercado de trabalho e um ajustamento fiscal particularmente forte, o crescimento dos últimos cinco anos foi superior ao da Alemanha.
Se considerarmos o nível de produção (PIB) como sendo 100 em 2007, seis anos depois, em 2013, ele alcançou 104 na Alemanha e 106 nos Estados Unidos, mas caiu para 92 na Espanha e em Portugal. Em 2018, porém, para aquela mesma base inicial de 2007, o índice do PIB, que na Alemanha atingiu 115, foi de 101 em Portugal e de 106 na Espanha.
A imputação ao “outro” de todo tipo de acusação é um recurso da retórica acerca do qual Schopenhauer, nas suas estratégias para vencer um debate, discorreu com precisão ao tratar da desqualificação do adversário. Fiéis a esses ensinamentos, os responsáveis pelas políticas equivocadas do passado apressaram-se a lançar ao programa posto em prática desde meados de 2016 a crítica de que consistiria num “austerícídio”. Foi a mesma crítica feita às medidas de “aperto de cintos” na Espanha e que, não por acaso, permitiram a recuperação da economia naquele país.
Na guerra de narrativas, é preciso que fique claro: políticas baseadas num forte expansionismo estatal causaram um aumento da inflação, um déficit elevado nas contas externas, a retração dos investimentos e a queda da economia e deixaram o setor público à beira do “calote”. Isso vem de longe: Otto Lara Resende dizia que Brasília foi o produto de uma conjunção de quatro loucuras: a de Juscelino, a de Israel Pinheiro, a de Oscar Niemeyer e a de Lúcio Costa. O gênio conjunto deles nos legou um País com uma imagem muito mais grandiosa de si mesmo que no passado, mas também um legado caracterizado por aumento da inflação, descontrole das contas fiscais e crescimento da dívida pública.
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Há que lembrar um dado – e provavelmente deverei repetir essa informação muitas vezes, neste meu encontro mensal com os leitores. A despesa primária do governo federal, que havia sido de apenas 14% do PIB em 1991, alcançou 24% do PIB em 2016, quando foi aprovado o teto de gastos. O País marchava rumo a uma situação de descontrole das contas públicas. Foi nesse contexto que se adotou a citada limitação para o gasto público, naquele ano, para pôr fim a esse processo.
Devemos separar o joio do trigo. O País está muito polarizado e é natural que, na dinâmica política, quem se opõe ao governo queira mudar tudo. Discordar do presidente, de alguns ministros ou de algumas políticas do governo, porém, é uma coisa. Já querer ir contra alguns pilares da política econômica é algo muito diferente. Uma hora, na ausência de controle fiscal, a conta estoura. Consertar situações como a que foi exposta causa problemas; medidas incidentes sobre o gasto nunca são populares, mas a austeridade, com o tempo, se paga e rende frutos.
“Austericídio” é um termo politicamente esperto, mas não combina com os fatos.
Fonte: “Estadão”, 07/08/2019