O contexto que presidiu à elaboração da Constituição de 1988 foi o da crise dos regimes socialistas na Europa oriental, mas os processos não tinham sido consumados no momento dos debates constituintes. O Brasil não dispunha, à época, de partidos conservadores, ou de um que fosse realmente liberal, no sentido clássico, comprometido com os princípios da liberdade dos mercados, de um papel reduzido para o Estado no terreno econômico e a favor uma abertura econômica real, tanto para fluxos de capitais e de investimentos diretos, quanto para o câmbio e contratos externos.
A maior parte dos partidos estava comprometida com “causas sociais”, sendo que o partido dissidente do regime, o Partido da Frente Liberal, se pretendia também social em seus propósitos de redução de desigualdades e de correção dos desequilíbrios dos mercados. Não surpreende, assim, que tenha havido forte pressão para a aprovação de conteúdo social em diversos capítulos do novo texto constitucional.
Num ambiente exacerbado pela crise econômica, pelo baixo crescimento e pelo estrangulamento externo, manifestou-se entre os congressistas constituintes a reação esperada no sentido de encontrar bodes expiatórios externos, o que aliás correspondia a anos de acusações infundadas sobre a responsabilidade internacional – credores, investidores, FMI – pela crise brasileira. Outro fator a influenciar qualitativamente a disposição dos constituintes foi a mobilização de meios políticos em torno de teses antagônicas às que tinham vigorado durante o regime militar, independentemente de sua racionalidade intrínseca, ou de uma análise de custo-benefício de cada uma das medidas então cogitadas para liberar o Brasil do chamado “entulho autoritário”. Finalmente, o congresso constituinte abriu-se ao recebimento de “sugestões” por parte da sociedade, o que gerou número significativo de propostas, todas elas tendentes a conceder benefícios a grupos específicos ou a população geral, sem que se cogitasse exatamente dos meios existentes, ou a serem criados, para o seu atendimento pela via estatal.
O resultado foi a promulgação de uma carta constitucional eivada de peculiaridades e de detalhamentos jamais encontrados em outros documentos do gênero, fazendo dela um verdadeiro contrato social, prometendo benefícios sem fim a uma sociedade que não se questionou, e não foi questionada, sobre os meios e fundos para atender a generosa lista de direitos autoconcedidos. A assim chamada “Constituição-cidadã” constitui, na verdade, um dos mais formidáveis ataques à racionalidade econômica jamais perpetrados na história constitucional brasileira. Todas as advertências feitas por economistas sensatos, inclusive contra os aspectos mais discriminatórios e xenófobos em relação ao capital estrangeiro – que depois foram em grande medida eliminados pelas emendas constitucionais aprovadas no início do primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso – foram negligenciadas, e a Carta foi aprovada na euforia geral em outubro de 1988.
Um novo regime econômico nascia ali, e com ele uma decorrência automática das generosas promessas feitas pelos constituintes ao povo brasileiro em geral, e a grupos de interesse organizados em particular: o aumento contínuo, constante, ainda que gradual, da carga tributária em todos os níveis da federação, em função, justamente, da imensa agenda de bondades criadas pelos constituintes, aplaudidas pela vasta maioria da população. Havia uma crença, infundada mas generalizada, de que mecanismos distributivos centralmente aplicados seriam capazes de superar certas constantes da história econômica do Brasil, quais sejam, os superlucros do setor privado, o “arrocho salarial”, a concentração de renda nas camadas já ricas e de terras pelos latifundiários, ou, de forma geral, a falta de investimentos públicos com foco em serviços coletivos.
Essa crença, derivada de uma interpretação social-distributiva da organização social alimentou a outra crença, também infundada mas igualmente forte e disseminada, de que cabia ao Estado aplicar e monitorar mecanismos de distribuição da renda em favor dos desprovidos, independentemente de qualquer cálculo de custo-benefício das medidas implementadas e sem estudos técnicos bem embasados sobre os desvios que sofreriam esses mecanismos pela ação corporativa dos “representantes do povo” e de toda a burocracia organizada no Estado, ademais dos grupos de interesses setoriais.
Estabelecidas essas considerações de caráter geral, a tarefa de identificar esses mecanismos e seus efeitos deletérios sobre o sistema econômico pode agora ser empreendida com base no próprio texto constitucional.
Este trecho é a primeira parte do artigo “A Constituição brasileira aos 25 anos: Um caso especial de esquizofrenia econômica”, escrito por Paulo Roberto de Almeida e publicado na revista “Digesto Econômico”. Leia a segunda parte.
Interessante reflexão! A minha dissertação de mestrado foi exatamente sobre isso. Fiz uma análise da elaboração da Constituição de 1988 utilizando como referencial teórico as teorias de Hayek sobre leis, justiça social, democracia, entre outras. Tudo o que o autor acima afirma.