A discussão sobre a natureza e extensão da crise internacional, e mesmo sobre se esta designação tão sombria serve também para o momento pelo qual passa o país, foi atropelada pela decisão do Comitê de Política Monetária (Copom) de 31 de agosto que, para alguns, decretou o fim do regime de metas para a inflação. Os membros do comitê, nas justificativas para a decisão, colocam o Banco Central (BC) um tanto ardilosamente ao lado da prudência, pois se antecipam não apenas aos analistas que acompanham o desenrolar dos eventos europeus, como à própria crise, deixando a forte impressão de que os senhores do Copom sabem mais do que o mercado sobre o que se passa nos subterrâneos bancários da Europa. Na verdade, este é o aspecto mais inquietante da decisão: o que o presidente Tombini teria ouvido em Jackson Hole (onde esteve na semana anterior à decisão, junto com os dirigentes de outros BCs do mundo inteiro)? O que tem conversado com seus colegas no exterior? Estamos no limiar de decisões importantes na Europa, tendentes a produzir turbulência nos mercados? Ou será que estamos apenas provocando a chuva ao vestir-nos para ela?
Esses mistérios – e não há quem se atreva a contestar o tamanho dos riscos de que fala o nosso BC – suspenderam as considerações habituais que compõem a liturgia do regime de metas e o suspense foi ainda mais ampliado pela discreta ofensiva de imprensa por parte de altos escalões da República procurando estabelecer a firme intenção governamental de melhorar as contas fiscais com o intuito de abrir espaço para a redução de juros.
Este é um raciocínio novo, talvez mesmo revolucionário, para um governo que procura, frequentemente de forma debochada, se distanciar de tudo que pareça convencional no terreno da política macroeconômica.
Em princípio, a tese, segundo a qual a melhora na situação fiscal representa o caminho para a convergência dos juros brasileiros para níveis internacionais, não tem nada que ver com a crise, mas parece prevalecer a noção de que perdemos uma oportunidade em 2008, quando podíamos ter explorado este caminho mais a fundo e não o fizemos por conta das gabolices pseudo-keynesianas e de uma gastança de motivação eleitoral. Assim sendo, uma nova crise internacional traria, quem sabe, a chance de jogar novamente esta mão, e fazer a coisa certa desta vez.
É preciso, todavia, não esquecer que as circunstâncias de 2008 foram muito singulares, e que não existem duas crises iguais. Em 2008 o choque deflacionista sobre as commodities foi tão forte que, mesmo com a desvalorização cambial, os índices de preço por atacado assinalaram quedas e os juros puderam ser reduzidos sem qualquer ofensa ao sistema de metas. O colapso nas commodities foi uma espécie de “bônus” (tratando-se de inflação, evidentemente) que não parece se repetir desta vez. Na verdade, se as commodities resistirem, bem como o nível de atividade local, o panorama inflacionário será radicalmente diferente daquele de 2008, de modo que será fundamental o trabalho na melhoria das contas públicas para abrir espaço para a queda nos juros.
É meio surpreendente que o governo tenha, afinal, abraçado a tese da convergência dos juros, se é que realmente o fez. A tese, na verdade, contradiz frontalmente as falas do ministro da Fazenda sobre os assuntos fiscais, mas nem mesmo ele parece se importar. É curioso vê-lo amuado, em seu novo papel, mais forte, falando de medidas de contenção fiscal, com o sotaque carregado que é próprio dos estrangeiros a estas práticas. Mas é simpático, como brasileiro naturalizado, que alega ser mais brasileiro do que os nativos, porque escolheu esta condição.
Mas será mesmo verdadeira esta nova prioridade para os resultados fiscais, considerando todas as ambições de investimento declaradas ou mesmo já contratadas, as promessas com relação ao salário mínimo e o tanto de argamassa necessária para manter unida a base governista?
Enquanto não se tem certeza sobre o que realmente se passa, seja na Europa, seja nas mentes das autoridades brasileiras no capítulo das contas públicas, a explicação mais fácil para a decisão de 31 de agosto continua a ser a doutrina Costa e Silva: o Palácio assumiu as rédeas da política monetária, na linha da célebre bravata do general presidente, que, a propósito das funções do Banco Central e do destino do primeiro presidente do BC, Dênio Nogueira, teria dito: “O guardião da moeda sou eu”. Em termos estritamente formais, pouca coisa mudou desde então: é a presidente da República quem detém o poder sobre a política monetária, pois a sistemática de metas para a inflação foi criada por um decreto, isto é, por um ato presidencial, e todos os membros do Conselho Monetário Nacional (CMN), o órgão que possui a competência para formular a política monetária seguindo as diretrizes da presidência, são ministros de Estado que devem obediência à presidente.
Mas é tão fácil como enganoso deixar-se levar por especulações sobre um novo modelo de relacionamento entre a presidente e seu banco central. É sempre mais sensato assumir que atores nesse jogo têm bom senso, e nenhum presidente da República com este atributo há de cogitar acumular as duas presidências. A maior parte das coisas que o BC faz é de natureza restritiva, é sempre melhor que sejam executadas por alguém distante da presidência da República. Especialmente quando o governo pode estar passando por uma espécie de indigestão de fisiologia em seu relacionamento com o Legislativo, ou pela sensação de que a coalizão governista se tornou tão pesada e cara que o governo Dilma corre o risco de sucumbir às exigências da governabilidade. Adicionalmente à ameaça de faxina, uma carta difícil de ser jogada por inteiro, faria muito sentido que uma urgência externa servisse como pretexto para o Executivo diminuir as benesses para todos de forma horizontal. O bom senso indicará à presidente que é muito mais fácil negociar com o Parlamento quando os cintos estão mais apertados. Indicará também que não há keynesianismo acadêmico que consiga resguardar sua inocência ao ver-se diante das demandas da base aliada.
A decisão do BC veio ao encontro a outro debate sobre se já não estava na hora de deslocar o trade-off entre juros e atividade econômica, decorrente da aplicação da mecânica de metas para a inflação. Os presidentes (da República), sem exceção, detestam fazer escolhas, preferem decisões econômicas que se resolvem sozinhas, e diante de dilemas difíceis trazidos pelos seus economistas, sempre querem mudar os termos do problema. Traduzindo para o economês: eles nunca querem andar ao longo das curvas, dando alguma coisa em troca de algo que querem, mas querem sempre deslocá-las, na ilusão de que podem ganhar o que querem sem nada perder. E pode ser exatamente isso o que está se passando com os juros no Brasil.
Há um inconformismo legítimo e crescente com a naturalidade com que se pratica, há vários anos, juros de 10% ou 12% anuais para a taxa Selic, equivalentes a juros reais superiores a 5% ao ano, para não falar em compulsórios e direcionamentos que ampliam o “spread” bancário e fazem as taxas para o crédito serem ainda mais absurdas. Será que não está mesmo na hora de atacar os fatores que efetivamente fazem do Brasil o campeão mundial de juros? Não teríamos permanecido tempo demais achando que podíamos praticar metas de inflação tal como na Nova Zelândia, como se os juros “neutros”, ou “de longo prazo”, no Brasil, não fossem inaceitavelmente altos? Ao pretendermos que isto era a normalidade, para não falar em “spreads” bancários e no custo do crédito, não teríamos provocado a presidência a determinar que seus economistas mudem “os termos do problema”, com todos os riscos aí envolvidos e sem ter ainda os fundamentos fiscais alinhados?
Para melhor entender os dilemas assim colocados, e sua recorrência histórica, é interessante observar um gráfico simples através do qual podemos enxergar tanto os dilemas brasileiros da época da hiperinflação quanto os de hoje, bastando trocar a variável do eixo vertical no gráfico.
Se medirmos a inflação no eixo vertical e o desemprego no eixo horizontal, a reta negativamente inclinada no gráfico é a famosa Curva de Phillips, que estabelece a relação negativa entre inflação e desemprego, ou o quanto de desemprego é necessário para reduzir um tanto de inflação.
O drama brasileiro no passado inflacionário residia no fato de que esta curva estava “muito alta”. O intercepto no eixo vertical era interpretado como a “inflação passada”, que determinava a “altura” da curva. Caminhar ao longo da curva parecia um despropósito, pois seriam necessárias recessões cavalares para obter resultados relevantes no combate à inflação. Esta era a crítica procedente e recorrente às “políticas de estabilização ortodoxas”. Foi este o problema que motivou políticos e economistas a estudar maneiras de “deslocar a curva” para baixo, e com este propósito entramos no terreno dos mecanismos institucionais de coordenação, das “políticas de rendas”, da administração centralizada da correção monetária, das pré-fixações e suas variantes. Assim começou a era dos pacotões.
Foram muitas tentativas desastradas de “deslocar a curva” via congelamentos, e muitas teorias tolas e sedutoras sobre a natureza inercial da inflação, até chegarmos ao Plano Real. Foi um longo e penoso aprendizado, muitos pacotes foram piores que o mal que procuravam combater, a história é bem conhecida.
Pois bem, os contornos do drama atual em torno dos juros são tão parecidos que podemos usar exatamente o mesmo gráfico para descrevê-lo, basta medir os juros nominais no eixo vertical, em vez da inflação, e reparar que a curva, agora, é a que se conhece como Regra de Taylor, a relação que descreve o modo como os juros são fixados pelo BC no âmbito do sistema de metas para diferentes níveis de desemprego. Quanto mais alto o desemprego, menor os juros fixados pelo Banco Central. São várias as estimativas econométricas para esta relação no Brasil, das quais são retirados os parâmetros básicos para a resposta do nível de atividade aos movimentos nos juros, sua estrutura de defasagens, e também as estimativas para a “taxa de juros de equilíbrio de longo prazo”, ou a “taxa neutra”, vale dizer, a taxa i* no gráfico, que vigora quando o desemprego está no nível, que supomos ser U*, onde não pressiona a inflação. Pois bem, as estimativas para o Brasil chegam a números entre 7,7% e 10% para esta “taxa de juros real de longo prazo”1, números que em hipótese alguma deveriam ser considerados normais.
Na verdade, a despeito dessa evidência, o efetivo comportamento da taxa de juros parece revelar uma clara tendência gradual de queda da “taxa neutra”, a despeito das oscilações determinadas pela operação do sistema de metas, sugerindo a existência de outros fatores, ou de outro teatro de operações onde se pode trabalhar o problema da “taxa de juros real de longo prazo”.
O fato é que, durante os últimos anos, não tem havido qualquer reflexão sobre “deslocar a curva” talvez porque os interessados não queriam que essa discussão fosse interpretada como uma crítica ao regime de metas, exatamente como antigamente, quando os economistas tinham receios que as fórmulas para deslocar a Curva de Phillips decaíssem para um experimentalismo heterodoxo, como de fato ocorreu. Entretanto, o silêncio dos economistas (com honrosas exceções2) diante do problema dos juros produziu uma perigosa impaciência acumulada entre as lideranças políticas no Congresso e do Executivo, todos ansiosos por alguma fórmula para destravar o assunto. A ansiedade atingiu tal ponto que o Executivo admite até mesmo reduzir despesa para abrir espaço para “deslocar a curva”.
Essas observações podem tornar mais compreensível a decisão recente do BC, contudo, deixam mais claros os riscos do movimento. Se a cavalaria do ajuste fiscal estiver logo atrás da autoridade monetária, uma ofensiva que parecia temerária em seus primeiros contornos passará a fazer parte dos anais do heroísmo militar. Se números em um patamar convincentemente melhor para o superávit primário de fato se materializarem, esta redução de juros poderá abrir espaço para um círculo virtuoso como o que começou em 2003 e pelo qual, uma vez mais, um governo petista trilharia com sucesso os caminhos ortodoxos que a história lhe oferece como oportunidade a despeito de inconsistentes com a sua retórica anterior.
Entretanto, como o histórico da nossa cavalaria fiscal é péssimo, e diversas vezes o BC foi abandonado à sua própria sorte em batalhas associadas à estabilização, sobretudo quando o trabalho a ser feito é no plano fiscal, não há muita razão para otimismo. Isso para não falar da fé das nossas autoridades econômicas, que aponta para outras direções. As consequências da combinação entre redução de juros e desajuste fiscal será a de nos colocar em território argentino, com um crescimento meio confuso, com uma inflação de dois dígitos e testando tolerância da sociedade brasileira a um patamar superior de inflação. Talvez a nossa presidente tenha ouvido lições de sua colega mais ao Sul: esse trauma todo com a inflação é uma fabricação dos economistas neoliberais, veja a minha popularidade, teria dito Cristina para Dilma.
O fato é que esta é apenas a primeira tentativa explícita de se “deslocar a curva” em divergência com a abordagem gradualista dos últimos anos. Vale lembrar que as tentativas de se deslocar a Curva de Phillips apenas funcionaram depois da oitava tentativa, e os custos do aprendizado sob a forma dos choques heterodoxos foram terríveis. Espero que o Brasil não esteja no início de uma nova fase de improviso e experimentação no terreno monetário, no âmbito da qual, parafraseando Churchill, vamos certamente chegar à fórmula correta, mas não sem antes experimentar todas as outras.
1 João José Silveira Soares e Fernando de Holanda Barbosa (“Regra de Taylor no Brasil: 1999 – 2005”, Encontro Anual da ANPCE, 2006) encontram valores entre 8% e 10%. Fabia A. de Carvalho e André Minella (“Previsões de Mercado no Brasil: desempenho e determinantes” em Banco Central do Brasil, Dez Anos de Metas para a Inflação – 1999-2009 Brasília: Banco Central do Brasil, 2011, p. 214) encontram o valor de 7,7% para a taxa de juros real de equilíbrio. Ilan Goldfajn e Aurelio Bicalho (“A longa travessia para a normalidade: os juros reais no Brasil” em Edmar L. Bacha e Monica B. de Bolle (orgs.), Novos Dilemas da Política Econômica Ensaios em Homenagem a Dionísio Dias Carneiro IEPE/CdG, GEN LTC, Rio de Janeiro, 2011) estimam a taxa de juros real de longo prazo em 8,0%.
2 Um exemplo representativo é o trabalho de Edmar Bacha, o mais recente “Além da tríade: como reduzir os juros?” em Bacha & Bolle, op. cit..
Fonte: Valor Econômico, 14/09/2011
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