O que significa essa palavra “pós-verdade”, que foi escolhida em 2016 a palavra do ano pelo conceituado Oxford Dictionaries? De aparência simples, quase inofensiva, fácil de pronunciar, e que soa mais como um modismo.
Em inglês, post-truth quer dizer a preponderância das crenças e ideologias sobre a objetividade dos fatos. Nada mais atual e desafiador. Explicando melhor, pós-verdade em certas circunstâncias – uma eleição com forte polarização ou uma situação limite como a dos refugiados na Europa – significa que a opinião pública pode ser moldada mais pelos apelos emocionais ou pelas convicções de cada um do que pela consistência dos fatos. Com isso, tende a ruir, ou no mínimo ser posto em cheque, o conceito da objetividade dos fatos, pilar essencial do jornalismo profissional desde o alvorecer do século passado.
Não se trata de uma questão subjetiva, como acreditava Nietzsche, de que a verdade não passa de um ponto de vista sobre a mentira, mas de uma evidência extraída da realidade contemporânea. Com a galáxia da Internet – o título é de um livro homônimo do escritor espanhol Manuel Castells, no qual ele sintetiza a tese de que a rede é a mensagem –, realmente a percepção e a versão dos acontecimentos ou mesmo a mentira, passou, em larga escala, a ser dominante. Na verdade, não é algo totalmente novo.
O poder da versão dos acontecimentos existe, digamos assim, desde a chamada teoria da “bala mágica”, cunhada na II Grande Guerra, quando se acreditava que o poder de sedução das notícias na mídia estava acima do seu conteúdo de verdade. A convicção generalizada era que tudo que ganhasse a grande mídia tinha o condão de seduzir, fosse verdadeiro ou não.
Imagem clássica foi a de dois nazistas, um levando um cavalo morto para o forno e outro levando um companheiro para o cemitério, com legendas que diziam exatamente o contrário: o cavalo ia para o cemitério e o nazista morto para o forno de modo a que seu corpo fosse usado para fabricação de banha.
Isto provocou a fúria das populações da região do Pacífico, que cultuam respeito aos mortos, e teria apressado o final da guerra contra os japoneses, com economia de milhares de vidas. A notícia foi publicada num jornal militar americano. Com o passar do tempo, questionou-se o poder da “bala mágica” que caiu no esquecimento e, agora, volta com força total. Por quanto tempo? O público seria passivo à proliferação da notícia falsa? Claro que não. Pelo menos o que se vê são cada vez mais questionamentos, mais apuração, e a necessidade maior da exigência dos fatos e de suas interpretações.
No dizer do Oxford Dictionaries, o termo “pós-verdade”, com a definição agora utilizada, data de 1992 e foi da lavra do dramaturgo sérvio-americano Steve Tesich (*). A palavra, um adjetivo, tem sido empregado com alguma constância há cerca de uma década, mas este ano de 2016 o uso da palavra cresceu, deixou de ser periférico, ocupou posição central nos comentários políticos, ainda segundo o Oxford Dictionaries, com boatos despertando interesse idêntico às das fontes de notícias idôneas. O pós-verdade tornou-se um fenômeno.
Não há dúvidas de que cedo ou tarde a verdade factual acabará por se impor. Se fosse diferente, as ideias totalitárias, em suas diferentes versões, teriam prevalecido. Foram desmascaradas e, seus protagonistas, se tornaram desacreditados. Basta saber em quanto tempo e qual o grau do dano causado por uma notícia falsa. No mundo de difusão imediata de informação, onde toda notícia é imediatamente acessada por todos, a busca pela informação correta e verdadeira é uma arte; afirma-la, em tempos de manipulação e de furiosas paixões que se elevam sobre o tribunal da razão e sobre a capacidade de pensar, é um embate constante e pernicioso entre o real e a irrealidade.
Pós-verdade pode perfeitamente ser entendido como a manipulação da opinião pública vestida em trajes de gala. Ou a velha mentira de roupa nova. E ainda como uma forma de narrativa que privilegie um tema de interesse, sem mostrar os diferentes ângulos.
A novidade que vai inspirar, e já inspira a bem da verdade (sem trocadilhos), é uma maior responsabilidade e atenção sobre o que se publica ou se põe em circulação com o nome de “notícia”. Fica evidente, nesses tempos de pós-verdade, que não é suficiente apenas informar rapidamente, mas informar bem, com atenção para a veracidade dos fatos e seus processos. Pois fatos são teimosos e exigentes. Processos são como peças de um quebra-cabeça que vão se somando, se completando. É verdade que fatos podem ser acompanhados de comentários críticos, úteis para a compreensão dos acontecimentos e para formar a opinião e o saber público. Nunca será demasiado, contudo, a atenção para a veracidade dos fatos. E fatos são fatos, são os melhores antídotos contra as inverdades e a manipulação.
Prova disso é o próprio Dicionário da Universidade de Oxford. Existe desde 1857 e acompanha as palavras desde a sua origem à utilização atual. Existiria melhor exemplo de que a verdade dos fatos sempre vence as especulações e artifícios de narrativas?
*Steve Tesich foi ganhador do Oscar de Melhor Roteiro Original em 1979 para o filme “A gangue dos quatro”. Escreveu o romance “Karoo”, editado postumamente em 1998, dois anos após a sua morte. Usou o termo pós-verdade em ensaio de 1992 referindo-se a um escândalo na Guerra do Golfo. “Nós, como um povo livre, escolhemos livremente que queremos viver em um mundo de pós-verdade”, ele registrou. O “pós” não se refere simplesmente a “depois”. O sentido está relacionado a palavras como “pós-nacional” ou “pós-racial”, em que os conceitos se tornaram irrelevantes. A “política de pós-verdade” seria, assim, uma política marcada pela irrelevância da verdade, soterrada pela emoção. Como no referendo britânico ou na eleição americana.
Fonte: Instituto Palavra Aberta.
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