É necessário ignorar e negar para viver. Mas alguns estudos revelam que, em muitas sociedades, ignorar é uma arte e negar, um método.
No Brasil, a negação é um método de demonstrar superioridade. “O que vem de baixo não me atinge”, falamos diante de um desafeto. As pedras (ou flechas) atiradas pelos inimigos não nos afetam. Pelo contrário, podem — como bumerangues — cair nos que ousaram nos atacar. Descobrir que isso tem mudado é um dos trabalhos da crise.
Anular o outro distingue sistemas aristocráticos imobilizados por posições sociais fixas das democracias marcadas pela mobilidade. O privilégio marca certos cargos e categorias sociais nas aristocracias. Nelas, uma mesma ação é crime se for feita por um indivíduo sem “eira ou beira” (sem relações), mas vira crise política se o seu praticante for “gente grande”.
A resistência extremada à igualdade perante a lei é o cerne da crise. Nela, as chamadas imunidades atreladas a certos cargos impedem qualquer processo. Seria absurdo sugerir que esse oceano de privilégios seria uma projeção da matriz aristocrática e escravocrata que vigorou de 1500 até 1889, no contexto republicano?
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Na monarquia, nobres, clero e povo tinham os seus códigos. Numa República proclamada a partir deste contexto (sem esquecer a escravidão), capitulou-se cuidadosamente os privilégios dos seus funcionários. Altas patentes, hoje chamados de assessores ou aspones — esses recebedores de mochilas, malas e caixas cheias de dinheiro sujo — são muito mais do que governantes. Eles passaram a ter foro privilegiado e, mais obsceno que isso, prescrição para seus crimes que têm o colarinho mais branco do que o de suas camisas.
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O viés aristocrático da burocracia republicana é um brasileirismo. A surpresa de Pedro II diante da maluquice republicana é significativa. Pois a maluquice é imaginar que se pode sair de uma monarquia para uma república sem crises e tumultos. As perenes crises republicanas — todas, aliás, muito semelhantes — resultam de uma revolução: a de tentar governar por meio do mérito individual uma sociedade de credo escravocrata e patriarcal. Republicanismo num contexto sócio-histórico patriarcal e escravocrata é muito mais revolucionário do que se pode imaginar. E as crises são o testemunho disso. Elas são chamadas de políticas mas, de fato, são crises sociais e de valores promovidas na sua totalidade por racionalidades opostas ou muito diferenciadas. Imaginar que a transição seria sem crise ou que a crise é defeito nosso é tão absurdo quanto pensar que os responsáveis por empresas estatais sejam indicados por suas capacidades e trabalhem para o bem do país, e não para os seus partidos e famílias.
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A passagem por golpe de uma monarquia a uma república não é algo trivial. Esse é o ponto.
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Somente no Brasil se pode imaginar que o trânsito de uma reciprocidade maussiana do dar para receber para os labirintos contratuais hobbesianos seria como tomar um sorvete ou ir ao cinema. Não é de graça que se substitui a mão visível do amigo preocupado em providenciar a propina, pela mão invisível de Mr. Adam Smith. Tal transformação é profunda, e a ausência dessa percepção engendra todo tipo de mal-entendidos. Um deles é fantasiar que o Estado deve “corrigir” ou “curar” a sociedade.
Não se pode negar o papel de impulsionar do Estado, mas isso não é igual a ele atribuir uma onipotência que em todo lugar resultou em totalitarismo e, no Brasil hodierno, nesta vasta roubalheira.
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Estou dizendo que a República foi um erro ou que ela é historicamente impossível no Brasil? De modo algum. Só os imbecis negam o que foi feito. Mas como não apontar que a crise brasileira é sistêmica e que ela tem um elo profundo com a tentativa largamente inconsciente de operar com valores opostos sem discuti-los?
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O que espanta na construção da democracia à brasileira é a inocência cultural relativa ao seu funcionamento. Inocência da qual os malandros se aproveitam.
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A “corrupção” é o resultado na intrusão do passado no presente. Um anacronismo que reproduz no novo regime as práticas recorrentes dos tempos do rei e dos déspotas porque sua força simbólica sempre foi subestimada. E o poder da política como uma engenharia sem consequências sociais sempre foi superestimada.
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A negação como narrativa — ninguém cometeu nenhum crime, tudo foi inventado, MAS… ninguém é de ferro — nada mais é do que a consequência da descoberta da democracia. Hoje sabemos que ela não é uma utopia; que ela é alérgica a privilégios e tem como ideal a igualdade. Essa igualdade que é, de longe, o maior problema brasileiro.
Fonte: “O Globo”, 20/09/2017.
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