*Por Jorge Caldeira
Começo minha convivência com a comunidade do Instituto Millenium fazendo o que posso neste momento de grande crise: expondo sentimentos pessoais e impressões pouco ortodoxas que ela gera por minha experiência de vida.
A experiência concentra-se especialmente na aplicação das noções para mim muito queridas de liberdade e empreender como caminho para lidar com uma realidade chamada Brasil. Parte importante do resultado do cruzamento foram biografias de empresários, em períodos que variam do século XVII (Padre Guilherme Pompeu de Almeida, tema de “O Banqueiro do Sertão”) até o XX (“Júlio Mesquita e seu Tempo”, recém-terminado). Outra se traduz em ensaios mais gerais que tocam nas relações institucionais entre atividade empresarial e governo. Há um tempo histórico longo envolvido no contato com essas questões.
Este tempo longo se cruza com meu tempo pessoal, bem mais curto. As duas décadas de alegria pesquisando o Brasil empresarial que faz convivem com o grande desprezo que a atividade empresarial e a consideração pelos empreendedores merecem na área de ciências humanas como um todo. O contraste acaba gerando oportunidades e problemas para entender a crise atual por seu lado histórico. Para ir direto ao assunto crise, repito um parágrafo da introdução ao manifesto divulgado por Rubens Barbosa neste site em 27/10:
“Caso o desequilíbrio da economia e o crescimento do déficit fiscal acima do produto interno bruto persistam, nos próximos anos o país corre o sério risco de se tornar inviável pela redução da capacidade de pagamento de suas dívidas”.
Simples, direto e duro. Mas, apesar disso, as respostas parecem distantes:
“A sociedade e os agentes econômicos e políticos estão focados no curto prazo e menos atentos às questões estruturais. Mas sem atacar as causas da crise brasileira de frente vai ser difícil de evitar o pior nos próximos 10, 15 anos”.
Já o texto do manifesto aponta um foco de solução:
“O desequilíbrio econômico, o crescimento do déficit público, da inflação, do desemprego e o gigantismo do Estado impõem a prioridade conjuntural do ajuste fiscal. O problema, contudo, é estrutural e torna urgente a discussão sobre a agenda de reformas.”
O contraste entre o tamanho do problema, a falta de atenção dos principais agentes e o limite do que se pode imaginar realisticamente como ajuste fiscal provocam uma certa agonia. Faltaria muito para equacionar a questão central da relação entre gasto público crescente, receita fiscal decrescente e capacidade de pagar.
Este nó em cujo centro está o Estado não de é desenho novo para a situação brasileira. Para encurtar as coisas, peço a atenção do leitor para este trecho de outro texto, o Manifesto Republicano de 1870:
“Atar o carro do Estado a dois locomotores que se dirigem para sentidos opostos é procurar a imobilidade, se as duas forças são iguais, ou a destruição de uma delas, se a outra lhe é superior. Para que um governo seja representativo, todos os poderes devem ser delegação da Nação, e não podendo haver direito sobre direito, (…) a soberania nacional só pode existir e ser praticada numa nação em que o parlamento seja eleito pela participação de todos os cidadãos e tenha suprema direção e pronuncie a última palavra nos negócios públicos. (…) Dessa verdade resulta que, quando um povo cede uma parte de sua soberania, não constitui um senhor, mas um servidor. Em consequência o funcionário tem que ser móvel, revocável, eletivo”.
Sei perfeitamente bem do tema original, a convivência das soberanias opostas do Poder Moderador dirigindo os negócios públicos através de funcionários não controlados pela sociedade e a soberania popular. Tenho imensas restrições a comparar metáforas.
Mas não encontro outro modo interior de sentir a ferida atual: gasto público definido como direito intocável e o direito igualmente intocável da sociedade de controlar despesas, centro da atual crise, aparecem em minha imaginação como os dois locomotores puxando em direções opostas.
Se for este o conflito, a imobilidade leva ao contrário do ajuste fiscal: seria apenas reflexo de uma situação que exige força cada vez maior para ser mantida – expressa na dívida, energia que se acumula como em placas tectônicas imóveis antes de ser liberada, para continuar explorando a metáfora do texto. Será que tal imagem histórica permite pressentir algo na crise presente?
Se permitir, talvez valha a pena considerar um ponto. Os republicanos de um século e meio atrás ao menos tinham uma vantagem para diagnosticar: a existência explícita de duas fontes diversas de força expressas na lei, e com ela luta de direito contra direito da representação eleita e do poder imperial. Assim podiam sugerir uma solução: remover um dos locomotores.
Na atual crise, todos os agentes relevantes pensam o problema do controle dos danos que o Estado brasileiro está fazendo à Nação como se a República tivesse cumprido tudo que prometia ao propor a remoção do Poder Moderador e houvesse apenas um soberano, um sistema político derivado dele, um orçamento que dispõe sobre o gasto nos limites da lei.
A metáfora pode permitir uma visada significativa em forma de pergunta: quem sabe o passado de soberanias opostas, poderes reservados a funcionários imóveis em relação ao soberano popular, além de gastos determinados por direito e que não estão sob controle dos cidadãos, não tenha sido eliminado tanto quanto desejavam os republicanos?
Neste caso, a crise brasileira teria eventualmente o caráter histórico de um acerto mais que secular com velhos problemas – e as soluções dependeriam de seu conhecimento como problemas. Minha experiência de historiador coloca-me esta incômoda minhoca – e espero que algum leitor me liberte dela.
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