Em “Sapiens: A brief history of humankind”, Yuval Harari atribui o sucesso do homo sapiens em relação a outros homos que o antecederam ou que com ele conviveram — e, de fato, às demais formas de vida no planeta — a sua capacidade de compartilhar narrativas imaginadas e tratá-las como se realidade fossem. Entram nessa categoria coisas como religião, dinheiro, Estados-nação, marcação do tempo e outras.
São todos elementos em torno dos quais organizamos nossas vidas, mas que não são de fato reais, como o são a biologia, as rochas, os eventos climáticos etc. São antes “realidades virtuais”, que facilitam a interação entre os seres humanos e ampliam sua capacidade de somar esforços, às vezes aos milhões, em busca de objetivos comuns, inclusive para alterar a realidade, da biologia ao clima. Na economia, por exemplo, teria sido impossível atingirmos o padrão de vida que hoje temos sem que “existissem” coisas imaginárias como um pedaço de papel ou um registro eletrônico a que chamamos de dinheiro e em troca do qual outros aceitam dar seu trabalho ou coisas que possuem.
Faz algum tempo, tenho utilizado o instrumental proposto por Harari para pensar sobre por que o Brasil não consegue sair da prolongada estagnação em que mergulhou no início dos anos 1980. Por que um país que nas primeiras oito décadas do século XX multiplicou sua renda per capita por 12 só conseguirá elevá-la em meros 30% nos 40 anos seguintes?
Vou repetir: por que um país que em dois períodos seguidos de 40 anos multiplicou sua renda per capita em média por 3,5 em cada um deles, no terceiro não irá conseguir mais que 30% de expansão? Isto em um período em que a renda per capita mundial terá sido multiplicada por 3,4!
Ao longo dos anos ouvi, e eu mesmo ofereci, várias explicações para esse fracasso: a crise do petróleo nos anos 1970, a má gestão da demanda agregada na segunda metade do ciclo militar, a forte expansão fiscal com a Constituição de 1988, o descaso que levou à hiperinflação, a Nova Matriz Econômica e por aí vai. São todas explicações pertinentes, mas limitadas no tempo. A explicação que precisamos é por que, ao longo de quatro décadas, erramos tão sistematicamente.
Não foi por desconhecimento ou falta de conselho. Não faltaram estudos, seminários, artigos de jornal, exemplos de outros países etc para informar que havia algo errado. Mas preferimos não ver e insistir no erro. Ou melhor, optamos por ver as coisas de outra forma.
É aqui que o instrumental de Harari pode ser útil para entendermos nosso quadro de estagnação. Harari enfatiza a criação de coisas imaginárias que ajudaram os humanos a progredir, mas também é possível a uma sociedade acreditar em coisas imaginárias que atrapalham o progresso ou que, depois de favorecê-lo por algum tempo, deixaram de ser funcionais e passaram a atrapalhá-lo.
Penso que no Brasil essa “realidade virtual” está construída em torno do papel do Estado e da crença de que ele tem todas as soluções para nossos problemas econômicos e só não as põe em prática devido à sua captura por “elementos do mal”: políticos corruptos, o mercado financeiro, os oligopólios, a “mídia golpista”, as corporações etc.
A construção do mito em torno do Estado onisciente se deu a partir dos anos 1930, levando à bem-sucedida transição de uma economia agrária-exportadora para um país urbano e industrializado, com padrão de vida muito mais alto. Ela foi adaptada nos anos 1980 para lhe dar um foco mais social, mas de outra forma permaneceu igual. Ocorre que essa construção imaginária perdeu sua funcionalidade, mas, em vez de se reconhecer isso, se buscam culpados para explicar porque ela não mais dá resultados.
A força dessa “realidade virtual” é tamanha que tanto tempo depois o Brasil permanece inconsciente do seu próprio fracasso ao longo destas quatro décadas. Seguimos tratando nossos problemas como se fossem apenas de natureza cíclica, resolvíveis com a queda dos juros, a ampliação da oferta de crédito barato do BNDES ou a eleição de um salvador da pátria. A coisa é bem mais complicada que isso.
A acelerada transição demográfica pode ser o elemento de realidade que vai colocar em cheque a construção imaginária que segue guiando nossas opções de política econômica, por conta de seus impactos sobre as contas públicas, o mercado de trabalho e a poupança. Mas não estou seguro disso; nossa sociedade parece surpreendentemente capaz de se acomodar ao fracasso econômico. O caso da Venezuela também sugere que os limites de tolerância com o fracasso são mais elásticos do que às vezes se imagina.
A criação de realidades virtuais e a caminhada rumo ao sucesso do homo sapiens tiveram início a partir da “revolução cognitiva” ocorrida entre 70 e 30 mil anos atrás, explica Yuval Harari. O Brasil também está precisando de uma revolução cognitiva, se não quiser continuar estagnado, enquanto o resto da espécie continua avançando.
Fonte: “Valor econômico”, 5 de maio de 2017.
E de onde virá essa revolução cognitiva com os níveis atuais de educação?.Felizmente temos instituições como o IMPA, que realiza diversas ações para elevar o desenvolvimento e o gosto por Matemática no país, por exemplo. Porém, ainda é muito pouco, e fica difícil imaginar uma saída que não seja a partir da sociedade e com o apoio governamental, para colocar o Brasil num patamar educacional compatível com a nona economia mundial. Gostaria de ouvir sobre possíveis soluções, achei que ficou faltando no texto.