Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa, como já dizia José Genoino. As tais “pedaladas fiscais” de que o governo está sendo acusado nem “pedaladas” são, e se fossem nada haveria de errado. No jargão dos economistas, “pedalada” define postergação de pagamentos, e qualquer governo, ou empresa, que consiga, através de negociação, adiar um pagamento para reforçar seu caixa estará cometendo um ato elogiável.
O que aconteceu nesse caso, como define o economista José Roberto Afonso, professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), é que, em linguagem popular, o governo pedalou a bicicleta de outro sem ter pedido licença.
José Roberto Afonso foi um dos autores da Lei de Responsabilidade Fiscal, e é com essa autoridade que garante: nada parecido foi feito no governo de Fernando Henrique, e nem mesmo nos de Lula. O crime está caracterizado pelo fato de que, de acordo com relatório de auditores do Tribunal de Contas da União (TCU), entre 2013 e 2014 o governo Dilma atrasou “sistematicamente” o repasse de recursos à Caixa, Banco do Brasil e Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (Bndes) para pagamento do Bolsa Família, Auxílio Desemprego, a equalização da Safra Agrícola e o Programa de Sustentação do Investimento (PSI).
Sem o dinheiro do Tesouro, os bancos estatais passaram a fazer os pagamentos com recursos próprios. A prova é que o BNDES enviou ofício ao Banco Central avisando que o Tesouro deveria pagar juros por esse dinheiro até o momento do repasse oficial do Tesouro. Por orientação da Advocacia Geral da União (AGU), o pagamento de juros foi negado, pois caracterizaria o empréstimo, que é proibido pela Lei de Responsabilidade Fiscal.
Mas o fato de não ter pagado juros não tira o caráter de empréstimo do que foi feito. A diferença então é essa: “pedalada” adia o pagamento em negociação com o credor, empréstimo é quando o pagamento é feito na data correta por outra fonte de receita.
O artigo 36, caput, da lei complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a famosa Lei de Responsabilidade Fiscal, é taxativo: “É proibida a operação de crédito entre uma instituição financeira estatal e o ente da federação que a controle, na qualidade de beneficiário do empréstimo”.
Tal operação constitui crime de responsabilidade, nos termos do artigo 11, inciso 3, da lei 1.079, de 14 de abril de 1950: “Art. 11. São crimes de responsabilidade contra a guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos: 3) contrair empréstimo, emitir moeda corrente ou apólices, ou efetuar operação de crédito sem autorização legal”.
[su_quote]O governo bate na tecla de que tecnicamente não houve empréstimo, mas, por via transversa, se obteve o que ela proíbe[/su_quote]
O governo bate na tecla de que tecnicamente não houve empréstimo, mas, por via transversa – o que é mais grave, já que se trata de um ardil para burlar a lei – se obteve o que ela proíbe. Isso não quer dizer, no entanto, que esse crime atinja necessariamente a presidente Dilma Rousseff, dando margem a um pedido de impeachment.
Mesmo que se saiba que nada era feito no seu primeiro governo sem que ela autorizasse diretamente. A equipe econômica do ministro Guido Mantega não tinha a autonomia que a de Joaquim Levy tem, que também não é completa. Uma boa definição do que sejam os limites de Levy está na sua declaração de que a dívida pública do Brasil é administrável.
Na mais recente reunião ministerial, o ministro Joaquim Levy a determinada altura de sua exposição disse que a dívida pública era alta. Foi interrompido pela presidente Dilma, que o desautorizou na frente dos demais ministros: “Não é alta não, Levy”. Mostrando que está aprendendo a ter jogo de cintura, o ministro da Fazenda não reagiu de imediato, mas aproveitou outro momento da palestra para voltar ao assunto e dizer: “A dívida pública, que como disse anteriormente não é alta, …”. Tirou gargalhadas da própria presidente e seguiu em frente.
Voltando ao impeachment, é preciso, como diz o ex-presidente Fernando Henrique, deixar que o processo do TCU siga seu caminho até o final para ver quem serão os acusados pelo crime de responsabilidade. Caso a cadeia de comando chegue à presidente da República, e não pare, por exemplo, no presidente do Banco Central ou do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal, ainda assim é preciso esperar a atitude do Ministério Público, que será acionado pelo TCU.
É um longo processo, que precisa ser acompanhado pela oposição mas que não está em seu ponto de maturidade para gerar qualquer consequência política mais grave além do desgaste permanente desse governo.
Fonte: O Globo, 21/4/2015
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