“O papel desempenhado pela educação em todas as utopias políticas mostra o quão natural parece começar um novo mundo com aqueles que são novos, por nascimento e natureza.” Hannah Arendt escreveu “A Crise na Educação” em 1954, sob o impacto da doutrinação escolar promovida pelos regimes totalitários. Mas ela sabia que a ideia-chave era mais antiga -e custaria a desaparecer. A escola catalã remodelada pelos nacionalistas evidencia a atualidade de sua crítica.
Na Catalunha, sob uma camada superficial feita de folclore, o nacionalismo desenvolveu-se como empreendimento educacional. Nas séries iniciais, colorindo o mapa político da Europa, as crianças “fabricam” uma república catalã independente, separada da Espanha. As aulas de história formam, ao lado do ensino da língua e literatura catalãs, o campo fértil do discurso doutrinário.
Nelas, disputas dinásticas setecentistas convertem-se em guerras nacionais catalãs e os republicanos antifranquistas da Guerra Civil Espanhola tornam-se precursores dos líderes separatistas atuais. O passado se reduz a pretexto para justificar moralmente as causas políticas do presente.
O professor doutrinário exercita a covardia. “No lugar de se dirigir a seus iguais, assumindo o esforço da persuasão e o risco do insucesso, há uma intervenção ditatorial, baseada na absoluta superioridade do adulto”, registra Arendt. Um diretor de colégio catalão denunciou pressões oficiosas, emanadas do governo regional, para levar alunos de nove anos, as mãos pintadas de branco, a uma manifestação contra a repressão ao plebiscito independentista. Em diversos colégios, por imposição dos diretores, guardaram-se cinco minutos de silêncio em protesto contra a prisão dos “dois Jordis”, líderes separatistas imputados por delito de sedição.
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Arendt enxergava a escola, na democracia, como uma pausa de reflexão entre dois estágios da vida: uma instituição intermediária entre a vida familiar e a vida pública. “A educação não pode ter relação com a política, porque em política tratamos com os que já estão educados”, isto é, com adultos. E “qualquer um que queira educar adultos pretende, de fato, agir como seus guardiões e impedi-los de ter atividade política”. O projeto doutrinário implica, no fim das contas, a destruição da escola.
A lição vale para a Catalunha e, de outro modo, para o Brasil dos ativistas de causas diversas que fazem da escola seu pátio de folguedos ideológicos. Por aqui, conta-nos a avaliação nacional de alfabetização, 55% dos alunos de 8 anos não identificam informações explícitas em textos simples e não resolvem subtrações com números de dois algarismos. Mesmo assim, desde o ensino básico, aulas e materiais escolares estão perpassados por discursos multiculturalistas, racialistas, terceiro-mundistas e, no limite,
implicitamente antissemitas.
No ENEM, a invocação dos “direitos humanos” funciona como varinha mágica para a coerção doutrinária. As provas de redação apresentam um problema social, solicitam que o candidato o examine e, absurdamente, exigem que exponha uma solução (“intervenção”). Um sabre pende sobre a cabeça dos jovens: o candidato será punido com nota zero, eliminatória, caso incorra em violação dos “direitos humanos”.
Nos cursinhos, mestres advertem para o risco potencial associado a frases que se desviem da norma política oculta: “Não critique cotas raciais”; “não conteste o sacrifício ritual de recém-nascidos em grupos indígenas”; “não use a palavra ditadura ao lado do nome Cuba”.
“Nega-se às crianças que se almeja educar como cidadãos de uma Utopia do amanhã seu próprio papel futuro na política pois, do ponto de vista delas, qualquer novo mundo que lhes seja proposto pelos adultos é, necessariamente, mais velho que elas mesmas”.
Sugiro que o MEC distribua cópias do texto de Arendt aos professores.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 28/10/2017
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