Luto com espinhos na barriga desde os 9 anos. Ao chupar uma laranja, engoli um caroço. Preocupado, abri-me com minha avó Emerentina:
— Vovó, eu engoli um caroço.
— Quando, meu netinho?
— Agora mesmo…
— Estás perdido. Amanhã ou depois vão nascer espinhos na sua barriga.
Vejam bem. Eu era acusado de ser canhoto, era o mais velho e tinha medo de almas do outro mundo. Agora estava condenado a ter espinhos na barriga.
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Mais de meio século depois, vejo que o país também tem um espinheiro na barriga. A irresponsabilidade contaminada de familismo — todo mundo é parente de todo mundo neste país de Deus! — fez com que engolíssemos todos os caroços.
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É impossível distribuir
Ser como todo mundo?
Come-se a fruta, joga-se fora a casca e o caroço. Nada pode ser completamente abocanhado. Se você recebe, é obrigado a dar. O ideal é o amor cujo egoísmo quanto mais prazer nos traz, tanto melhor para o outro. Não é por acaso que o amor nos leva ao pico do altruísmo pelo mais fechado e ardente egoísmo. A chave está em conjugar altruísmo com egoísmo.
Engolir caroços promove indigestão. É triste ver o Brasil roubado pelos seus mais altos e mais admirados administradores públicos e particulares.
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Estarei vivo quando o Brasil estiver “recuperado”?
Vivi tempos em que éramos apenas “subdesenvolvidos”. Naquela época mitológica, havia um atraso admitido: o clima tropical (que impedia o pensamento, como dizia um dos nossos professores), a Serra do Mar (muralha a bloquear a conquista do sertão), a colonização lusa (se fossem os holandeses…), a mistura fatal das “raças”, o jeitinho jurídico que, vejam o horror, condena ácidos criminosos a doces prisões domiciliares, o feroz imperialismo ianque, os coronéis latifundiários, os políticos ladrões (mas que faziam…), os sistemas eleitorais indevidos, a saúva, a sensualidade, o samba, a cachaça, o diabo…
O Brasil, como dizia Otto Lara Resende, não tinha furacão, tufão, terremoto, nevasca e maremoto, mas tinha inflação. Domesticamos a inflação, mas o populismo que produziu plutocracia quebrou as contas públicas. Hoje, temos um sistema travado, e o nosso time político, com o perdão pelo feio qualificativo que lhe cabe, é uma merda. Com a devida vênia aos honestos, todos têm algum laço, traço ou gene espúrio.
Aliás, a nossa “elite” é uma Grande Família. Os partidos que deveriam conter os empenhos da casa ressurgem fortes no estamento (como dizia com avassaladora sapiência Raymundo Faoro). Se você gritar “tio!” ou “padrinho!” no Congresso Nacional ou em qualquer outro ambiente repleto de “gente grande”, você vai ouvir um amoroso “sim?…” Mudamos para a “coisa pública”, mas os laços de parentesco retornam como um furacão. Reprimimos legalmente o nepotismo puro, mas um ardiloso jeitinho inventou um brasileirismo — o nepotismo cruzado!
Nada, convenhamos, é mais legitimo na nossa democracia igualitária e meritocrática do que dar uma “mãozinha” a um parente se ele (ou ela) tem aquele talento. Mas — pergunta o menino com espinho na barriga — qual é o parente que, no Brasil, não tem talento?
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Mais uma vez abrimos a rotineira temporada de reformas. Eu vivi as “reformas de base” que resolveriam tudo. E votei no dilema entre presidencialismo e parlamentarismo. Depois, me envolvi no retorno da monarquia. Agora testemunho essa requentada temporada de reformas e logo percebo que a reforma mais essencial — a da Previdência, sendo evitada porque ela leva a uma indesejável análise do nosso sistema administrativo e de outros temas avessos à chamada “vontade política”, como o nosso perfil demográfico.
Não falo da reforma política, exceto para dizer que precisamos mais de uma metamorfose dos políticos do que de uma mudança de regras. Sou, entretanto, a favor de eleições e de deseleições (recall) que nos livrem dos canalhas. Sou contra esse tal fundo eleitoral que alguns imbecis chamam de “democrático”. Partidos políticos são associações de cidadãos e, como um clube, devem ser autofinanciáveis. A doação eleitoral só é um problema porque, entre nós, a doação vira um favor. Temos caridade, não temos a filantropia que leva a um melhor diagnóstico da dinâmica sociopolítica, além de ser um penhor dos muitos ricos à coletividade que lhes permitiu êxito.
Pelo que devo às sociedades tribais do Brasil, sou contra a privatização de reservas indígenas. E favorável à coletivização das riquezas particulares que, literalmente, saem pelo ladrão.
Fonte: “O Globo”, 30/08/2017
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