Uma das lendas mais bem-sucedidas da história do Brasil, que há décadas tem vencido a inteligência comum, a experiência prática e a aritmética, sustenta que cortes nos gastos do governo prejudicam “os pobres”. Quaisquer cortes? Sim, quaisquer cortes. Não daria para cortar nada — nem reduzir de 150.000 para 140.000 reais, por exemplo, o salário mensal de um desembargador federal, ou mesmo estadual? Não, não daria. Quem garante isso, naturalmente, é a prosa dos que mandam e influem neste país, de um jeito ou de outro — e que, ao mesmo tempo, são os encarregados de gastar e receber o dinheiro. Os brasileiros não sabem, mas tudo isso é feito em seu próprio bem. Você é pobre? Então cuidado: sempre que ouvir alguém dizendo que é preciso cortar despesas numa máquina pública que arrecada 2,5 trilhões de reais em um ano, gasta até o último tostão disso tudo e ainda fica devendo uma enormidade, pode ter certeza de que estão querendo tirar o pouco que você tem. É curioso, porque os que pregam com mais paixão a fábula segundo a qual não se pode cortar nada, nem colocar um teto para o gasto público, não são os pobres — são, justamente, os mais ricos. Não fazem isso, tanto quanto se saiba, porque querem prejudicar a si próprios.
Estariam apenas querendo ajudar os mais desvalidos, então? É o que dizem, mas desde que não tenham de transferir a eles nem um níquel daquilo que ganham do governo e de seus subúrbios. Na prática, como em tantas outras coisas no Brasil, grita-se a favor de alguma decisão de elevado mérito público, enquanto se trabalha em silêncio para enfiar dinheiro, benefícios e vantagens em bolsos privados. Como a Constituição brasileira garante a plena liberdade de crença, todos têm o direito legal de acreditar que a cantoria contra a diminuição das despesas do governo é um procedimento generoso. Não se pode cortar, Deus do céu, dinheiro que vai pagar os “gastos sociais” — nosso maravilhoso sistema de saúde pública, por exemplo, que, segundo o ex-presidente Lula, causa “inveja” ao resto do mundo (embora ele mesmo, em pessoa, jamais ponha os pés ali dentro). Ou o confortabilíssimo serviço de transporte coletivo nas cidades. Ou o nosso aparelho de segurança pública, que consegue manter os casos de homicídio em apenas 60.000 por ano. Também não se pode, asseguram os campeões do pró-gasto, diminuir a “capacidade de investimento do Estado brasileiro” — talvez a melhor piada de todas, considerando-se que o Estado brasileiro, há anos, não tem dinheiro para investir nem na construção de um mata-burro no interior do Piauí. Gasto público, ainda por essa ideia fixa, significa “distribuição de renda”. Distribuição para quem? Para os pobres, com certeza, não tem sido. Se fosse, o número de pobres estaria diminuindo a cada hora. Fora em algumas cifras incompreensíveis, suspeitamente parecidas com estatísticas argentinas do estilo Kirchner, não foi possível até hoje observar esse fenômeno no Brasil.
Na verdade, o governo só consegue distribuir renda a si mesmo — e só seus donos, não “os pobres”, perderiam com a redução da despesa pública. Dos 2,5 trilhões de reais que vai tirar da população em 2017 (de janeiro até agora já se foram mais de 450 bilhões), o governo vai queimar 40% com sua folha de pagamento; em áreas como o Judiciário os gastos com pessoal chegam a 90% das despesas totais. O grosso desse dinheiro todo fica com uma minoria ridícula — talvez uns 50.000 peixes gordos, se tanto, num total de 12 milhões de funcionários públicos nos três níveis de governo. Em matéria de concentração de renda, é um espetáculo de categoria mundial — só comparável ao da Previdência Social, em que 1 milhão de aposentados do serviço público, civis e militares, consomem mais dinheiro que os outros 25 milhões de brasileiros que se aposentaram no setor privado. Há, para os nababos, os mais exóticos tipos de benefício: auxílio-moradia, vale-refeição, bolsa de estudo para os filhos até a universidade, licenças, prêmios, abonos, diárias, autorização para faltar ao serviço e mais ou menos tudo que se possa imaginar em matéria de roubar legalmente o público pagante. Outros 40% do bolo, ou pouco mais, vão para pagar juros da dívida — pois, com tudo o que arrecada, o governo não consegue cobrir suas despesas e tem de tomar dinheiro emprestado, o que, obviamente, só gera mais dívida e mais lucro para quem empresta. Tiram-se ainda as verbas de manutenção e vai sobrar o quê?
Só mesmo aumentando os impostos. É a única proposta dos nossos gênios.
Fonte: “Veja”, 15 de março de 2017.
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