Os tempos são pródigos em estampar infames símbolos locais. O que vai, volta; o escondido aparece fulgurante. Colhemos o que plantamos. O país é assombrado por uma epopeia de arranjos impensáveis pelo bom senso e rejeitados pela honestidade.
Mas tudo tem limite. Esse estilo surge na obscena imagem — uma das fotografias mais pornográficas que vi em toda a minha vida — de uma batelada de dinheiro. Eis que, no chão de uma sala vazia de um prédio residencial, oito malas e quatro caixas abertas expõem despudoradamente maços de dinheiro. De “dinheiro vivo” — dinheiro nu, cru e roubado — que, sem dono ou banqueiro, jaz inerte e desamparado no vácuo de uma sala.
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O cenário sugere um dinheiro com um dono tão poderoso que ele pode permanecer oculto. Tal como os tesouros enterrados por piratas, escravocratas sovinas e os administradores do patrimônio público — os donos das chaves do reino estatal —, essa imensa quantidade de riqueza é impedida de circular em benefício da sociedade.
Poucas vezes na minha longa vida vi uma paisagem tão bizarra como a desse tesouro de R$ 51 milhões em busca de um dono. A cena das malas transbordantes de grana assusta na sua poética e libidinosa impessoalidade de natureza morta. Todo dinheiro escondido, enterrado ou imobilizado pela troca antissocial (a chamada propina), transforma dinheiro em podridão. Pois o dinheiro, como o poder, só tem existência legítima quando entra em circulação e, como as palavras, é posto ao alcance de todos. Dinheiro oculto e sem dono é — como os maus sentimentos — um sintoma de pestilência. Da peste que tortura mais do que a morte porque o nosso formidável sistema legal tem o viés da impunidade — do privilégio, dos recursos e da prescrição.
Nada encaixa melhor com essa tonelagem de dinheiro vivo do que a morte da ética e do bom senso. Da moralidade que tem sido impiedosamente assassinada pela aliança fluida e feita de sangue — na precisa e mafiosa linguagem do companheiro–ministro petista de todas as horas, Antonio Palocci, o Italiano — entre um populismo sacana e ambições empresariais que desonram e ajudam a demonizar qualquer sistema econômico. Ambos com horror à competição e ao mérito. Ambos apaixonados pela excelência monopolística e totalitária, que é o lado mais tosto de um capitalismo de compadres desse velho Brasil de todas as “Brás” que, espero, esteja nos seus estertores.
As pencas de dinheiro pornograficamente expostas são a vergonhosa contrapartida de um sistema político incapaz de domesticar afeitos, aventureiros e picaretas-operadores. Esses tais doleiros encarregados da mediação entre ideologias generosas e o brasileiríssimo desejo socialmente aprovado de se arrumar por meio do Estado. Esse desejo, sejamos honestos, que sem jamais ter sido trazido à luz do dia, consegue orquestrar o roubo familístico de recursos públicos como um projeto positivo. Se eu não fizer, outro vai fazê-lo — diz o mandamento.
Descobrir, como ordena o eufemismo policial e legal, quem é o dono do tesouro é mais uma história da carochinha. Pois num sistema hierárquico, no qual a República tem sido canibalizada por cargos que preservaram prerrogativas e privilégios das velhas nobrezas, todos sabem que o dinheiro é da sociedade. E foi dela afanado — eis a traição — pelos que por ela foram eleitos para administrar suas riquezas. A quebradeira do Brasil é tanto mais revoltante quando se sabe que ela foi um dos saldos, obra daqueles que mais prometeram salvar o país.
Esse é símbolo maior desse tesouro perdido e achado num apartamento. Nele está sinalizada a urgência de que o Brasil precisa redefinir o que é de quem e, ao fazer essa atribuição, alocar sérias responsabilidades reais (e não apenas legais) aos seus administradores. Não se pode mais continuar com uma leitura do público como um espaço que, sendo de todos, não é de ninguém. Pois é justo nessa cultura do quanto maior o cargo, menores a responsabilidade e a possibilidade de punição, que surgem esses empresários capazes de comprar milhares de políticos que se colocam permanentemente à venda. São eles que — donos do poder e patrões das ideologias — proclamam em alto em bom som: nóis não vai preso! Queridos leitores, o erro crasso não é de gramática, é de democracia!
Fonte: “O Globo”, 13/09/2017
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