Em qualquer sociedade honesta para com os seus valores, a saída reside na neutralização dos males que a afligem. Todos os coletivos têm coisas em comum. Em nenhum, estimulam-se o assassinato, a doença ou a evasão de regras gerais em benefício exclusivo de alguma família, etnia ou classe social.
Todo sistema discerne que mazelas como a morte, a doença, a loucura, a corrupção, o fanatismo ou o crime — embora inevitáveis — não podem ser transformadas em valores. Reconhecer o mal não significa a ele render-se. O crime, conforme aprendi com Durkheim, é lamentavelmente normal; mas só é normal se for combatido e evitado!
Essa velha lição parece ter sido esquecida no Brasil. Um sintoma disso é quando se tem dúvidas do remédio; ou quando os remédios aprofundam ainda mais o crime, fazendo com que vício e virtude se confundam a ponto de se perder o fio da meada. Daquilo que, em qualquer grupo, constitui sua fidelidade a si mesmo como grupo.
Quando os indivíduos se associam, eles deixam de ser exclusivamente motivados por seus interesses particulares. A teia de relações estabelecidas entre os membros de um coletivo passa a ser fundamental nas suas decisões. Em todo elo há, no mínimo, dois egoísmos, mas não se pode esquecer de que o elo é, ele próprio, um ator. Toda relação tem, como diria o grande Pascal, razões que os seus atores desconhecem. Ou, como estamos testemunhando com vergonha no caso brasileiro, fingem cínica e paradoxalmente, em nome da lei, desconhecer.
Os atores podem ter intuitos egoístas, mas as suas relações paradoxalmente fazem surgir dimensões que vão além desses propósitos, já que elas têm também suas finalidades. Uma relação comercial só atende bem aos seus atores na medida em que satisfaz sua finalidade de criar riqueza. Do mesmo modo, o amor é usado, mas ele também usa — quando não mata — seus amantes, como ocorreu com Romeu e Julieta.
Quando falamos que existe honra entre ladrões, apontamos para uma ironia. Como pode existir honra num grupo de marginais?, pergunta o nosso lado individualista, invocando, sem saber, um elemento coletivo. Ora, diz o nosso lado sociológico, a honra entre ladrões, pervertidos e marginais é justamente aquilo que suas ações revelam sobre os seus sistemas. A honra entre ladrões — tal como as compulsões dos pervertidos do Marquês de Sade, de Freud e do diabo de Machado de Assis — é o testemunho daquilo que precisa ser investigado e compreendido.
Nem sempre, como descobriram Mandeville e Maquiavel, o egoísmo produz egoísmo. Mais das vezes, o vício produz virtude e até mesmo santidade ou riqueza, como constatou o diabo brasileiro de Machado de Assis. Pelo mesmo paradoxo, nem sempre a benevolência engendra equidade. O nosso velho populismo não produziu igualdade, mas corrupção, traição, desmoralização e plutocracia.
Nas chamadas Ciências Sociais, o progresso consiste, como acentuou Albert Hirschman, numa emancipação das convenções. Não se pode aplicar ao Estado a mesma moralidade requerida para as pessoas. Esse paradoxo de Maquiavel não é muito diferente daquele que ensina como bons sentimentos não fazem boa poesia ou ser amigo do cara garante administração pública honesta.
O grande ensinamento dessa brutal crise brasileira é que ela nos leva para uma viagem para dentro de nós mesmos. Não há mais no mundo em que vivemos a possibilidade de “consertarmos” o Brasil por meio de um modelo externo ou de um salvador vindo de fora (do sul ou de baixo). Não há mais nada que não tenha sido sugado pelo sistema que, globalizado, permite contar até as barras de ouro de gatunos olímpicos nessa olimpíada de ladroeiras, na qual ganhamos todas as medalhas e batemos todos os recordes.
Quero, pois, imaginar que a investigação e o julgamento das imoralidades que testemunhamos não vão liquidar a Política, mas a politicalha que a desmoraliza. Estou igualmente convencido de que não liquidamos nenhuma das utopias — liberdade sem censura, igualdade com meritocracia e oportunidade para os desvalidos — da minha juventude. Se o paradoxo dos fundadores do pensamento social estava correto, uma abusiva imoralidade tem nos conduzido a uma não prevista atitude mais realista relativamente à necessidade de termos um código moral e um credo político do qual devemos nos orgulhar. Revolução não combina com malandragem e hipocrisia.
Se o vício particular engendra virtude coletiva, por que o familismo domesticado não engendraria uma administração pública competente? Não é justamente a roubalheira que nos tem trazido um agudo sentimento de justiça e de honestidade?
Fonte: “O Globo”, 11/10/2017.
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