Respondo rapidamente: sim e não. Com desculpas pela ambiguidade, explico imediatamente. Sim, orçamentos públicos devem ser sempre equilibrados, mas isso numa perspectiva de médio ou até de longo prazo, consoante o planejamento econômico que todo estado moderno faz em torno de suas receitas e despesas. Não, o orçamento público não precisa ser equilibrado, no sentido de ser superavitário ou de apresentar equivalência perfeita entre receitas e despesas (déficit zero). Vejamos.
Um estado – que sempre é uma abstração, posto que ele é comandado por pessoas que ocupam funções governativas, mas que, pelo menos, devem obedecer a leis e a certos rituais da democracia – é uma unidade econômica que obedece às mesmas leis econômicas dos agentes privados: a um determinado nível de produção (ou de renda) corresponde um volume determinado de consumo, de exportação e de poupança (que depois será transformada em investimento ou consumo diferido), gerando algum excedente ou déficit final (que tem de ser coberto pela dívida ou pela poupança externa, que por sua vez dão direito a remuneração pelo uso do capital, geralmente sob a forma de juros ou de dividendos). Tudo isso é muito simples, mas um estado se permite maiores liberdades, das quais um agente privado não dispõe.
O orçamento do estado é sempre uma variável mais flexível do que os fluxos de fatores e de pagamentos no setor privado. Aqui, estamos falando de indivíduos ou famílias que vendem a sua força de trabalho para empresas que lhes pagam salários, com os quais eles comprarão os bens e serviços ofertados por essas empresas. Nem as empresas, nem os indivíduos têm o poder de criar dinheiro, algo que os governos podem fazer num fiat; claro, existem limitações a esse poder – que é a inflação e as reações que isso desperta no público e em seus representantes políticos; mas o monopólio de emissão dos governos (em si mesmo um abuso intolerável, para os que defendem total liberdade econômica) lhes fornece uma arma não disponível aos comuns dos mortais. Mais ainda: os estados interferem diretamente nos fluxos privados, taxando os salários dos trabalhadores, o lucro das empresas, o próprio ato de compra e venda (pelos impostos indiretos), assim como ele taxa aluguéis e ativos financeiros de maneira geral, o patrimônio material e outras formas líquidas e menos líquidas de riqueza. Convenhamos que com todo esse poder extrator, o estado pode acomodar facilmente um orçamento desequilibrado por meio de algum esforço fiscal suplementar, ou seja, de extração ampliada da riqueza gerada pelos particulares.
Supõe-se que os burocratas da autoridade financeira realizem esses pequenos ajustes anuais nas receitas e nas despesas correntes, de forma a acomodar orçamentos públicos que, no médio e longo prazos, devem ser razoavelmente compatíveis com as possibilidades da economia nacional. Se houver desequilíbrios muito grandes (para o déficit, entenda-se), isso será sempre sancionado pelos mercados, que demandarão juros mais elevados para cobrir as necessidades de financiamento do setor público e, com isso, espera-se que os mesmos burocratas – orientados por estadistas conscientes e responsáveis – façam algum esforço ulterior para trazer essas contas para patamares considerados normais num mundo, hoje, largamente integrado financeiramente.
Os orçamentos públicos não precisam ser sempre orientados para produzir saldos positivos, numa suposição otimista quanto à destinação dos gastos adicionais. O pressuposto aqui é que, atuando numa base intergeracional, o estado pode realizar mais gastos do que o normalmente permitido pelas suas receitas, num dado exercício fiscal, se essas despesas forem destinadas basicamente a investimentos produtivos. Ele assim estaria contribuindo para o crescimento econômico, para a geração de renda e riqueza, em parte apropriada por ele mesmo, e com base nos impostos acrescidos ele conseguiria não apenas pagar os juros da dívida pública, como amortizar o capital, no momento da maturação do principal. Esse tipo de planejamento orçamentário é normal e corriqueiro na administração pública, e governantes responsáveis recorrem a esse tipo de antecipação “otimista” para acelerar o crescimento e a geração de renda.
Outra é a situação, no entanto, se o estado estiver incorrendo em déficits orçamentários – e, portanto, em dívida pública – para alimentar gastos correntes, o que revelaria uma atitude irresponsável e insustentável no médio e longo prazos. Seria como se particulares vendessem o próprio imóvel da família para sair em férias, para comprar presentes ou para frequentar restaurantes.
Resumindo: orçamentos públicos podem, sim, ser “desequilibrados” – se administrados de maneira responsável quanto ao horizonte temporal do financiamento desse déficit; e podem, sim, exibir déficits constantes, se estes forem em proporção razoável de maneira a permitir seu financiamento em bases correntes sem prejudicar o crescimento. Ou seja, governos responsáveis não deveriam pressionar os juros para cima, pois isso diminuiria a possibilidade de investimento privado e, portanto, de geração de emprego e renda para o pagamento futuro dos juros e do principal da dívida pública. Todo o problema está em determinar de quanto devem ser esses juros “de equilíbrio” e quais seriam os limites aceitáveis para os déficits orçamentários e para a própria divida pública.
O problema dos juros – como o do monopólio da moeda – está em que existe uma autoridade monopolística (o Banco Central) que determina o valor de referência, quando este deveria ser preferencialmente determinado pelo mercado (ou seja, pelo encontro das “vontades” dos poupadores e dos investidores quanto ao nível possível a ser cobrado pelo uso do dinheiro). Historicamente, juros de mercado no capitalismo tem se situado em 3,5% reais ao ano (ou seja, um ou dois pontos a mais, nominais, para compensar uma inflação de níveis “civilizados”). Bancos Centrais responsáveis tem atuado numa linha concordante com esses valores: quando os juros são muito baixos – por iniciativa dos governos – o sistema cria bolhas que vão inevitavelmente estourar mais à frente. Pois bem, governos irresponsáveis, que precisam “tomar” o dinheiro dos poupadores, trazem esses juros para cima, e com isso desequilibram todo o sistema privado de poupança, de empréstimos e de investimentos, como ocorre muito frequentemente em países que conhecemos bem…
Quanto a limites razoáveis para buracos orçamentários e para o endividamento público, não existe uma regra universal. Mas os europeus que atuaram na criação da moeda única, o euro, fixaram os chamados “critérios de Maastricht”, que indicaram um teto de 3% do PIB para o déficit anual e um valor total de 60% do PIB para a dívida pública. Podem ser aceitáveis, mas não como regra fixa, pois depende muito do perfil da dívida – sua maturação e exigibilidade no tempo – e do preço pago pelo financiamento, isto é, quanto o governo paga de juros. Em certos países a dívida total pode não ser tão alta (por exemplo, menos de 50% do PIB), mas os juros são muito elevados, o que poderá afetar futuros orçamentos mas, também, no imediato, o mercado de créditos e o correto aprovisionamento dos empresários em capitais de risco para seus investimentos produtivos, posto que o governo captura esses recursos.
Não é, como se vê, uma questão fácil. Depois desta minha breve explicação, espero que ela tenha se tornado um pouco mais compreensível…
(Publicado em “OrdemLivre.org“)
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