Respeitar os direitos políticos de todos não implica o dever de financiar candidatura
Candidato, vejam só, vem da palavra cândido. Candidus, em latim, significa branco, brilhante, sincero. O candidatus ao Senado vestia-se de branco. O modelito era escolhido, segundo alguns estudiosos, para indicar as boas intenções do aspirante a um posto público elevado. Candidaturas, no Brasil, têm sido sustentadas com recursos de propaganda muito mais complexos, mais caros e em boa parte financiados com dinheiro público. Os programas de rádio e televisão, usados há muito tempo e custeados pelo governo, são o exemplo mais conhecido. Há também o fundo partidário, recurso federal transferido todo ano, com ou sem eleição, a entidades privadas conhecidas como partidos. Tem-se discutido com frequência o uso dessa verba. Muito menos comum tem sido o debate sobre a questão mais importante, a única, de fato, fundamental: por que manter essa indecente e improdutiva drenagem do Tesouro? Mas a história continua. No arremedo de reforma política em discussão no Congresso, tentou-se criar um fundo eleitoral de R$ 3,6 bilhões, pendurado, naturalmente, na conta da viúva. A tentativa, por enquanto, se mantém, e mais uma vez o contribuinte está ameaçado.
Ao incluir a proposta em seu parecer sobre o projeto, o relator, Vicente Cândido (PT-SP), candidamente batizou a novidade orçamentária como Fundo Especial de Financiamento da Democracia. Esse mimo deve equivaler, segundo o plano, a 0,5% da receita líquida projetada para a União. A ideia pegou mal. A fixação do valor de R$ 3,6 bilhões foi por enquanto rejeitada pela maioria dos deputados. Mas os cidadãos precisariam ser muito cândidos, no sentido voltairiano, para se tranquilizar. Não se desistiu da manobra. A decisão sobre a fonte de financiamento das campanhas foi apenas adiada. Além disso, novas sugestões foram lançadas. Tem-se falado em transferir para outras formas de uso a verba até agora destinada a rádios e televisões. Também surgiu, um pouco mais discretamente, a ideia de engordar, simplesmente, o fundo partidário. Em todos os casos, trata-se de recorrer ao Tesouro, também conhecido como bolsa da viúva.
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Boa parte das críticas ao Fundo Especial de Financiamento da Democracia (o nome, pelo menos, vale um prêmio) tem sentido meramente conjuntural. Condena-se a ideia de entregar R$ 3,6 bilhões aos partidos, para custeio das campanhas, por causa do mau estado das contas públicas. Tem-se argumentado como se a proposta do fundo eleitoral fosse apenas inoportuna, isto é, apresentada em momento impróprio.
Nesse estilo de raciocínio, pode-se ir mais longe e contrastar o custeio público das campanhas com outras aplicações possíveis do dinheiro. No alto da lista devem aparecer, naturalmente, educação e saúde. Mas também esse tipo de alegação deixa de lado o essencial.
No fundo, quem assim raciocina admite o financiamento público de campanha, se as condições orçamentárias forem razoáveis e se, além disso, os gastos considerados prioritários estiverem garantidos. Mas o problema fundamental é político e envolve a distinção entre interesse estritamente privado e interesse público.
Partidos são entes privados. Podem apresentar-se como representantes de classes, de categorias profissionais, de grupos definidos por qualquer tipo de objetivo comum. Podem rotular-se como portadores das mais nobres bandeiras. Mas valores essencialmente públicos, num Estado democrático, são apenas aqueles inscritos na Constituição – e esses devem ser mínimos e compatíveis com o pluralismo de ideias e de objetivos.
Não se contorna o problema do fundo eleitoral garantindo financiamento a todos os partidos. Não tem sentido, numa democracia, forçar o contribuinte a financiar, com seu imposto, quaisquer partidos ou candidatos, a começar por aqueles por ele rejeitados. A adesão à democracia impõe ao cidadão o dever de respeitar os direitos de organização política e de participação em eleições. Não impõe a obrigação de ajudar qualquer partido ou candidato a conquistar votos. Da mesma forma, todos devem respeitar e defender os direitos de crença e de expressão, dentro dos limites compatíveis com a liberdade e os direitos de todos, mas ninguém tem de concordar com qualquer crença ou afirmação. Essas objeções valem para o fundo partidário, mesmo quando o dinheiro é usado rigorosamente para os fins estabelecidos na lei. Referências a práticas de alguns outros países podem animar a discussão, mas são insuficientes para ofuscar a diferença entre o público e o privado.
Resta, é claro, a discussão sobre como devem ser as campanhas e sobre como financiá-las. Pode-se defender tanto a doação exclusiva da pessoa física quanto a participação também da pessoa jurídica. Há argumentos ponderáveis a favor das duas teses. Em qualquer caso, é preciso levar em conta o registro do agente doador. Isso deve permitir, supostamente, a identificação de objetivos. Seria interessante discutir se a doação individual indicará o interesse tão claramente quanto a contribuição de uma empresa.
A distinção entre o público e o privado é um componente relevante da política moderna, desde o fim da Idade Média. Essa distinção é ainda mais importante nos Estados democráticos. Não é função do poder público, num regime de liberdade, estabelecer objetivos de vida para os indivíduos ou cuidar de sua felicidade. Mas é sua função criar condições para cada um, dentro de razoáveis limites legais, buscar seus fins e sua felicidade segundo sua concepção.
Quanto a estes pontos, o pensamento liberal do Iluminismo permanece atual, embora complementado pelas ideias a respeito da igualdade de condições no ponto de partida (com políticas de educação, formação profissional, saneamento, assistência à saúde e outros esquemas distributivos custeados com meios públicos). Incluir o financiamento a partidos entre as condições de igualdade inicial é evidente exagero. Ou, em linguagem cândida, malandragem.
Fonte: “O Estado de S. Paulo”, 27/08/2017
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