O encontro com o outro obriga a perceber a diferença, e a diferença é o limite que condena a traduzir e a tentar compreender
Um dos mistérios das sociedades humanas é a constatação de como os seus membros são (e estão) convencidos de que suas crenças, gestos, comidas, rituais, utopias, ideologias (e tudo mais que denominamos “estilo de vida”) são óbvios, virtuosos, legais e religiosamente certos. O deles é fantasioso. Mas o nosso é mais do que verdadeiro — é real.
Além disso, é espantoso descobrir que toda essa tonelagem de valores é invisível aos seus membros. O crente não tem consciência da sua crença. O feitiço é tão grande a ponto de pensarmos que falamos uma língua quando é a língua que nos fala. E só tomamos consciência disso quando nos confrontamos com a aparente algaravia de um outro idioma. O encontro com o outro obriga a perceber a diferença, e a diferença é o limite que condena a traduzir e a tentar compreender.
Para o portador da boa nova e para o crente, o extraordinário é descobrir o tamanho do batalhão de outros crentes que, com crenças diferentes das suas, também forma a humanidade. Esse foi o susto desagradável que a antropologia social deu no eurocentrismo. A tolerância é um hospede não convidado de um mundo que confunde tecnocracia com sabedoria.
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A diversidade agencia dúvidas, conduz a escolhas e engendra o inimigo capital dos crentes: a liberdade, o ceticismo e o inesperado abraço da compreensão. O caminho da transcendência anunciada por alguns santos, poetas e filósofos.
Mesmo quando o crente conhece outras crenças, ele não as percebe como alternativas, mas as encara dentro de uma matriz que vai do infantil e do eventualmente divertido, até chegar ao “esquisito”. Daí para o errado, o proibido, o censurável, o louco e o abominável, é um passo.
Mas, como toda rigidez contém o seu contrário, só a crença produz descrença. E assim toma o infiel desafiador — o outro absoluto — como forte ou superior justo porque ele resiste. A religião abolida torna-se feitiçaria; a ideologia reprimida vira virtude, a música censurada é a mais ouvida. E o estrangeiro branquelo e louro, engalanado por sotaques, é tido como mais civilizado; enquanto o nosso familiar universo misturado é apresentado como doente e atrasado.
Para o nosso lado permanentemente colonizado, os estrangeiros brancos — os “de fora” — sempre foram superiores. Eles contrastam com os negros africanos e os nativos que, no Brasil, constituem uma ficção chamada de “povo”. Na nossa mitologia, cada qual tem uma cota de poder. Mas nenhuma atinge o ideal atribuído aos “brancos” que reiteram o paradigma clássico segundo o qual o herói civilizador é um superestrangeiro. Só que eles não vieram do céu, como os deuses, mas nos “descobriram”. Assim, imperadores e imperatrizes austríacas que falavam com sotaque mandavam na multidão de mestiços e negros dominados por costumes tidos como exóticos e atrasados. De um lado, a Corte; do outro, o Brasil…
O modelo de cima e de fora proibia o de dentro, lido como inferior e doente. Aceitamos costumes de fora tanto quanto ignoramos as nossas práticas cotidianas. Tudo o que é de fora é “legal”. Tudo o que é de dentro é visto como “tupiniquim” — como atraso. Daí resulta essa imensa segmentação entre a maquina administrativa com seus formalismos supostamente civilizada — o Estado; e a sociedade feita de jeitinhos, nos quais se concretiza o mal-estar de uma indisfarçável ilegalidade recorrentemente produzida. Ilegalidade que cresce na medida em que nos recusamos a levar a sério hábitos e estilos de vida e inventamos leis que não podem pegar. De fato, o que fazer quando o compadrio e o parentesco puxam para a nomeação do sobrinho, contrariando a regra que criminaliza o nepotismo costumeiro? O administrador público segue a lei até ser capturado pela força das crenças embutidas nos costumes. Achar que costumes se mudam com leis é uma crença que, como diz Gilberto Freyre, promove enormes mudanças formais, mas deixa intocados costumes e crenças para as quais essas mudanças foram dirigidas. Mudamos as leis, mas não preparamos a sociedade para as mudanças por elas requeridas. Seria muito melhor diminuir o fervor legalista para dar mais atenção às demandas dos costumes. Pois a sua força só será domesticada quando eles forem reconhecidos, compreendidos e, na medida do bom senso, atendidos.
Enquanto isso não for realizado, vamos continuar a ter Estado e sociedade como inimigos. Cada qual cavando a sepultura do outro, como é o caso dessa crise interminável na qual as demandas da amizade se confundem com as responsabilidades dos cargos e poderes.
Fonte: “O Globo”, 06/09/2017
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