Uma palavra resume a crise brasileira: a igualdade. Conforme tenho salientado no meu trabalho e nesta coluna, o Brasil não tem problemas com a desigualdade. Ele ama de paixão as hierarquias e as gradações que estão em toda parte. Em nossas leis sobram privilégios, penachos, recursos, isenções…
Nossa formação nacional teve no escravismo, no patrimonialismo aristocrático e no compadrio das casas-grandes e nos grandes apartamentos dos “bairros nobres” de nossas cidades o seu centro e razão. Não é fácil ser igualitário com essa folha corrida.
Sempre fomos dinamizados por elos pessoais oficializados e legais. Nosso projeto de vida funda-se no arrumar-se e no “subir na vida”. Alcançar o baronato — ser alguém —, “virar famoso” e, do alto da sua celebrização, ter direito a fazer tudo sem ser molestado pelo bando de caretas que, infelizmente, não são como nós.
Saber com certeza quem é quem, mapear com precisão genealogias familísticas, poder dizer com um riso superior — “conheci Frank Sinatra quando ele morava em Hoboken e era um merdinha”; ou, “esse eu conheço!” — confirma a nossa ontologia segundo a qual “conhecer” ou relacionar-se pessoalmente é um modo de estar num mundo ordenado por ricos e pobres, superiores e inferiores, homens e mulheres, brancos e negros, limpos e sujos. O modo de navegação social confirma um universo ordenado em camadas e é melhor você estar “por cima”.
Nossa questão mais angustiante, o que eventualmente nos tira do sério, não é saber que tudo tem um dono, e dele receber ordens. Não! É entrar numa sala onde outras pessoas também aguardam na fila, e todos se olham com uma ofensiva indiferença porque ninguém sabe quem é quem. No Brasil, a igualdade é vivida como uma ofensa ou um castigo.
O anonimato associado à cidadania nos perturba. Para nós, o maior castigo não é a prisão, é saber que somos iguais a todo mundo porque burlamos a lei que foi feita para todos, menos para nós. Quando indiciados, viramos vítimas de uma maldosa igualdade republicana!
No Brasil lido como Estado nacional, somos todos “cidadãos”. Mas no Brasil relacional da casa e das amizades que nos impedem de dizer não, somos todos parentes e amigos. Não somos como todo mundo.
Saiu ao pai ou ao avô… Merece a nomeação. Ademais, é afilhado do presidente e tem “pinta” e “jeito” de alto funcionário: não vai fazer feio.
A “aparência”. Eis um traço merecedor de um tratado de sociologia. Meu mentor harvardiano, Richard Moneygrand, dizia que a “luta das aparências” (e das recomendações e empenhos) é tão ou mais importante do que a luta de classes no Brasil…
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— Logo vi que era “gentinha”…
— Você viu o “jeito” dele (ou dela)? Descobri imediatamente quem era pelo modo como ele (ou ela) se sentou, comeu e falou.
— Você viu a roupa? Notou o sapato? Atinou para a sujeira das unhas?
— Eu até que tolero a pobreza, mas não me conformo com falta de limpeza. Um pobre precisa ser limpo. Sobretudo se for preto…
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Nosso inferno não são os “palácios” onde poucos entram, todos se conhecem e sabem dos seus lugares, mas os espaços abertos. Sobretudo quando temos que esperar o sinal para caminhar e sentir como todo mundo!
— Eu sei que que não sou e jamais vou ser todo mundo! — diz o magistrado do Tribunal Supremo.
É justo nesse “todo mundo” que jaz, como um cadáver oculto, o nosso problema. Pois como ser como todo mundo se mamãe nos criou para ser ministro? Como ser como todo mundo se a nossa família tem origem nobre? Empobrecemos mas “temos berço”.
Como, então, seguir as normas de urbanidade deste nosso mundo urbano?
— Não entro em fila! Não tenho paciência para esperas imbecis. Pago a um criado para tanto. Tenho quer cuidar do meu projeto político socialista, que é urgente e está atrasado. Como é que eu vou ter tempo para ser como os outros?
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A República proclamada sem um viés igualitário só tem a perna da liberdade. A da igualdade que, ao lado da fraternidade, regularia o seu caminho, nasceu atrofiada e até hoje permanece torta. A liberdade de gritar, de confrontar, é reveladora. Só grita quem pode, e calar é sinal de juízo e respeito.
Hoje assistimos às tramas para impedir a realização da igualdade que, para muitos poderosos, foi longe demais igualando quem deveria estar acima da lei.
— Como ser como todo mundo numa sociedade marcada por privilégios? Qual a fórmula do viver democrático e igualitário?
— Aprenda a dizer não a si mesmo. É nesse abrir-se para ser como todo mundo que está o espirito igualitário. A alma da democracia.
Fonte: “O Globo”, 02/08/2017
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