O Brasil aparece excepcionalmente bem no quadro apresentado pelo Barômetro Global da Corrupção (BGC) divulgado nesta semana. É o país onde a chamada “petty corruption” — a pequena corrupção não institucionalizada e de caráter individual, envolvendo agentes públicos que interagem diretamente com os cidadãos — é menor na América Latina. É contraintuitiva mas não surpreendente a desconexão entre micro transgressões e a grande corrupção, envolvendo financiamento de campanha e o chamado setor contratista do Estado.
O argumento de que “pecadillos” individuais produzem a corrupção sistêmica tem avançado desde o mensalão. É um argumento atraente por que fornece uma narrativa de culpa coletiva e exime responsabilidades. E tem longo pedigree: veja-se a evolução do debate em torno do caráter nacional brasileiro. Mas não tem sustentação empírica. Na realidade a causalidade vai na direção oposta, como as pesquisas mais sofisticadas sugerem: a corrupção corrompe, como afirma Shaul Shalvi em “Behavioral Economics — Corruption corrupts”.
Gachter e Schulz, em artigo na “Nature” em 2016, por exemplo, encontram evidências para uma amostra de 2600 participantes de 23 países sobre o impacto da grande corrupção sobre a pequena (relacionada ao que chamam honestidade intrínseca). Os participantes oriundos de países com altos escores no Índice de Prevalência de Violação de Regras (PRV) (uma medida de grande corrupção, fraude política, e evasão tributária) tinham maior probabilidade de se engajar em atos corruptos em experimentos de laboratório. O índice é construído com dados de 2003 com um objetivo específico: ele não poderia ter sido afetado pelos participantes que são jovens e eram crianças então, portanto é robusto (o leitor treinado metodologicamente diria que não há problema de endogeneidade).
Evidências de que o contexto (por exemplo, a impunidade prevalecente em um país) e as normas sociais influenciam a propensão a transgredir se acumulam. Fisman e Miguel, em 2006, examinaram milhares de multas de estacionamento cometidas pelos funcionários de corpos diplomáticos em Nova York (que possuíam imunidade até 2002 quanto às multas). Trata-se de um experimento natural e portanto as conclusões são robustas: há forte correlação entre estacionamentos ilegais e indicadores de corrupção nos países de origem dos diplomatas. Mesmo na ausência de qualquer punição, as normas sociais forjadas nos países de origem importaram. Neste estudo, o Brasil está bem posicionado em 30ª posição dentre 149 países.
A conclusão é que o contexto (forte corrupção e impunidade) é que causa o comportamento observado. A lição a extrair para o Brasil é que a grande corrupção é que influencia a nossa sociabilidade e estimularia as microtransgressões, não o contrário. Se aqueles no “andar de cima fazem, porque eu não posso fazer?”, é máxima que orienta o comportamento social. A causalidade é complexa e há muito a fazer em pesquisas futuras.
Estes achados de pesquisa não resolvem o paradoxo da aparente independência entre as micro transgressões e a alta corrupção — pelo menos em termos comparativos. Talvez o problema seja de mensuração: como saber se a grande corrupção é pequena ou grande? A corrupção é difícil de medir e os indicadores de percepção da corrupção são insatisfatórios. Para a pequena corrupção os dados de vitimização — se houve tentativa de extração de uma propina ou efetivo pagamento — fornecem a melhor aproximação. Para a grande corrupção há o Índice de Pagamento de Propinas construído com surveys com centena de executivos de multinacionais, que é insatisfatório.
A corrupção revelada ou observada e a real (não observada) são coisas distintas. A primeira é endógena: é gerada pela ação de agentes como polícia ou ministério público e portanto sujeita a viés desses agentes. Pouca corrupção revelada pode significar baixa corrupção ou simplesmente escassa capacidade investigatória e sancionatória. E vice versa. Qualquer fenômeno que leve ao aumento dessa capacidade causa um aumento no curto prazo da corrupção revelada. Isto é, a percepção generalizada de que a corrupção aumentou no curto prazo. O efeito é não linear: no médio e longo prazo o novo padrão de sanções tem efeito dissuasório, inibindo práticas corruptas. É isso exatamente que vem acontecendo nos últimos anos no país e que se espera venha acontecer no futuro. Parecer piorar é parte do processo de melhoria. Na realidade, o mesmo aconteceu em 2011: quase 2/3 dos entrevistados também acreditava que a corrupção havia aumentado.
As evidências disponíveis convergem: a pequena corrupção é, comparativamente falando, baixa no país. As evidências estão presentes na série histórica do BGC (incluindo todas as regiões do planeta e não só a América Latina) e também do Barômetro das Américas do Projeto de Opinião Pública da América Latina (Lapop). De acordo com o BGC de 2010-2011, a porcentagem de brasileiros que declararam ter pagado propina no ano anterior foi de 4% (contra 9% e México 51%, na pesquisa de 2016), comparado a 12% da Argentina, 21% do Chile e 31% do México. Com exceção da propina paga à polícia (o Chile saiu-se melhor), o Brasil está a frente de todos os países da América Latina em todas as rubricas: alfândega, concessionárias de serviços públicos, serviços de registro imobiliário, agências de regulação e licenciamento, judiciário, serviços de saúde e educação.
A informação sobre a vitimização da corrupção — tentativas, da parte de agentes públicos, de receber propina, em oposição a pagamentos de propina realmente efetuados, é também muito favorável de uma perspectiva comparativa. Nesta pesquisa de âmbito global, o Brasil está em 14ª posição à frente da Itália, Espanha e Estados Unidos.
Se é razoável esperar defasagem temporal entre exposição massiva da corrupção e comportamento individual: o impacto do mensalão e do petróleo ainda não se manifestou plenamente. Ou o pior está por vir; ou daremos um salto qualitativo no combate à corrupção sistêmica.
Fonte: “Valor econômico”, 13/10/2016.
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