Já se vão 168 dias e até agora o presidente da República não deu uma explicação razoável para os motivos pelos quais recebeu no porão do palácio um hóspede inoportuno, acusado de vários delitos, que, nestes cinco meses foram lembrados pelo anfitrião, seus advogados e adeptos da permanência dele no poder. Nada há mais a fazer quanto a isso, a não ser esperar com resignação e a fé possível que ele conclua os 14 meses restantes do mandato que lhe cabe cumprir pelo fato de ter sido o número dois da chapa eleita em 2014, como manda a Constituição da República.
Diante do fato inexorável decretado pela maioria absoluta dos deputados federais eleitos na mesma ocasião, só nos resta desmentir as lendas que correm de boca em boca a respeito desse pedaço infeliz de nossa História. Talvez não seja demais lembrar que, ao contrário do que apregoa a esquerda minoritária, o mandato que autoriza seu exercício da chefia do Poder Executivo é tão legítimo quanto o era o da líder da chapa, Dilma Rousseff. Em nossa ordem constitucional vigente ninguém se elege sozinho. O candidato a presidente arrasta consigo seu sucessor. E todos os que agora empunham o lema “Fora Temer” podem muito bem partir para o sacrifício bíblico de rasgar as vestes, espargir cinzas sobre os cabelos, ajoelhar-se e rezar com fervor o ato de contrição. Afinal, Temer está no poder por obra e desgraça dos votos deles.
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Essa, aliás, não é, como muitos podem pensar, uma circunstância isolada. Nem gratuita. Dilma é mesmo fruto da vontade de outros, mas não de um só, e sim, no mínimo, de dois patronos. Luiz Inácio Lula da Silva, dono do PT e deus ex machina da esquerda, impôs a adventícia aos petistas por ser senhor e suserano de seus votos de cabresto, mas estes não eram suficientes para elegê-la. Para que o poste das trevas fosse posto de pé seu padrinho teve de apelar para os universitários fisiológicos de plantão do PMDB, sob a inconteste liderança do constitucionalista Michel Temer. Sem tal apoio ela não chegaria ao segundo turno em 2010 e 2014.
Como aprecio repetir e os leitores bem sabem disso, a deusa Clio, que rege a História, é de uma ironia incomparável. O que acontece no Brasil hoje deve merecer boas gargalhadas dela no Olimpo. Os que elegeram o intruso querem que ele desocupe a cadeira. E o PSDB, derrotado nas duas eleições vencidas por Dilma e Temer, faz parte do governo que não queria, na esperança de que este cumpra o programa que seus sabichões da economia imaginam. O objetivo é justo. Afinal, depois da própria reeleição, Lula jogou no lixo da História as práticas de sensatez que mantiveram a herança bendita de Fernando Henrique, adotadas por ele no primeiro mandato. E aí arruinou o País assaltando a pobre República.
“Ruim com Temer, pior sem ele” é o refrão dos tucanos apanhados no furto generalizado que produziu a mais avassaladora crise ética, financeira, econômica e política da História desde as priscas eras em que os Andradas sabiam fazer a hora e não se avassalavam aos poderosos de plantão, como agora.
Quem tem consciência dos escassos dotes morais de Lula e das óbvias deficiências de inteligência e caráter de sua sucessora sabe muito bem que não há solução para a completa ablação dos caraminguás das contas públicas sem as reformas. A reforma trabalhista foi uma grande conquista e algo precisa ser feito de forma radical e urgente para evitar que o déficit da Previdência – negado por um bando de ilusionistas de boteco pé-sujo – cause o apodrecimento total do orçamento público.
É nobre a causa de quem aposta numa gestão federal capaz de deter a degeneração das contas, que provoca a crise em que agonizam o emprego de 12 milhões de trabalhadores, empresas que garantiriam o sustento de todos e a moral pública, trocada por milhões de reais de propinas guardadas até em apartamentos de laranjas. É imenso o alívio causado pelas recentes boas novas.
O problema é que, por enquanto, esses dados animadores ainda podem ser abalados pelas barganhas da Realpolitik. Quem não votou em Temer e se arrependeu de ter sufragado Aécio Neves e outros tucanos comprometidos na mesma roubalheira do PT e do PMDB nos governos de Lula e Dilma/Temer talvez não deva dar demasiada atenção a essas contas de redução do apoio do Congresso às reformas que o governo promete. Não tanto pelos efeitos da impopularidade do presidente, que em nada influi na rotina da administração da União. A preocupação deve se voltar para barganhas feitas pelo chefe do governo para impedir na Câmara as investigações por crimes de corrupção passiva, organização criminosa e obstrução de Justiça.
Os custos dessas barganhas vão muito além dos R$ 32 bilhões de dinheiro público empenhado, segundo Felipe Frazão em reportagem publicada no Estado, na compra de apoio dos votos “salvadores”. A bancada ruralista, responsável pelo agronegócio, que salva o Brasil do miserê, cobrou caro por seus 200 votos: a portaria, não importa se bem-intencionada ou não, que pôs o mundo de sobreaviso em relação a facilidades para o trabalho similar à escravidão. A reforma trabalhista, boicotada pelo açodamento dos agentes da Justiça especializada, é ameaçada pela troca de votos para Temer por facilidades para a cobrança obrigatória da indefensável contribuição sindical. E a impermeabilização da face do presidente abrindo mão da privatização do segundo aeroporto de maior movimento do País para atender a pleito do condenado no mensalão Valdemar Costa Neto e seu suspeitíssimo PR torna útil lembrar que a diferença notória entre este e Joesley Batista é que o marchante não foi condenado.
É preferível eleger presidente e congressistas que, legitimados, garantam, de forma permanente e mais segura, as conquistas necessárias para animar a economia, cuidar da saúde das empresas e recobrar os empregos perdidos. Quem tem pressa pode é passar fome.
Fonte: “O Estado de S. Paulo”, 01/11/2017.
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