A jornalista americana Roxana Saberi, filha de pai iraniano e mãe japonesa, foi condenada a oito anos de prisão na República Islâmica pela falsa acusação de espionar o país para os Estados Unidos, sofreu tortura psicológica e foi obrigada a confessar o crime que não cometeu.
Em entrevista à revista “Veja”, ela conta sua história, defende a luta pelos direitos humanos e criticou a leniência do governo Lula em relação aos direitos humanos na República Islâmica e disse que a próxima gestão deve fazer mais pela causa. “O Brasil tem ganhado influência no cenário internacional e tem bons laços com o Irã, portanto deveria assumir também a responsabilidade de falar sobre as violações dos direitos humanos”, afirmou.
Leia a entrevista na íntegra:
Como você descreveria os cem dias em que esteve presa em Evin, no Irã?
Acabou sendo uma jornada pessoal, que teve diversas partes. Uma delas envolveu descobrir as injustiças enfrentadas por diversos iranianos. Muitos estão sendo punidos simplesmente por defender direitos humanos básicos: liberdade de expressão, liberdade religiosa… Então, pela primeira vez na minha vida, eu experimentei o gosto da injustiça pessoalmente. Outra parte desta jornada foi uma busca de alma sobre mim mesma porque eu fui submetida a uma intensa pressão psicológica e abusos, que eles chamam de “tortura branca”. Estes abusos não deixam marcas em seu corpo, mas devastam sua mente e sua consciência. Alguns prisioneiros também são fisicamente torturados – eu não fui – mas, sob esta pressão psicológica, fui pressionada a fazer uma confissão falsa. Eu cedi porque eu estava com medo.
Como foi esta confissão?
Os meus captores me obrigaram a fazê-la em vídeo. Diziam que se eu não confessasse, nunca seria libertada. Eles me fizeram gravar quatro vezes até parecer natural. Me mandaram sorrir e olhar para a câmera. Eles passam esse tipo de coisa na TV estatal iraniana.Tentam convencer a sociedade de que os acusados são pessoas ruins. Mas acho que os iranianos já se deram conta de que este tipo de coisa é propaganda e começaram lamentar pelos prisioneiros.
Foi o que aconteceu com a também iraniana Sakineh Mohammadi-Ashtiani, condenada ao apedrejamento por adultério, que apareceu em alguns vídeos? Na ocasião, seu advogado disse que ela foi torturada…
É possível. O mesmo deve ter acontecido com os dois jornalistas alemães, que foram presos ao entrevistar um dos filhos de Sakineh… Isso é simplesmente desprezível…
Como era o cotidiano na prisão?
Nas primeiras duas semanas, eu fiquei numa pequena cela individual. Eu dormia no chão sobre mantas porque o carpete era finíssimo. Não havia colchão nem travesseiro. Era desconfortável e fazia muito frio no local. Tinha uma pequena janela perto do teto, que não recebia muito sol. A luz ficava acesa 24 horas ao dia. O banho era permitido quatro vezes por semana. Eu lavava minhas roupas – uniformes e pijamas – no chuveiro. Três vezes por semana eu ia a um pátio todo cimentado e através de uma cobertura com uma espécie de arame podia ver o céu. Eu via os pássaros e pensava: “queria ser ao menos a sombra de um deles”. Depois de duas semanas, eu fui colocada numa cela duas vezes maior, que dividia com outras prisioneiras políticas.
Como você lidou com a situação?
Eu me dei conta de que antes de ser presa a liberdade me parecia algo inerente. Contudo, depois, só um simples ato de usar o telefone – que eu sabia estar numa outra sala ali do lado – era proibido. Eu não podia fazer uma ligação a ninguém para dizer onde estava. Isso, aliás, é a maneira como eles colocam pressão nos prisioneiros. Eles cortam a sua comunicação com o mundo exterior, fazem você perder as esperanças e acreditar que ninguém pode te ajudar a sair de lá, exceto os seus captores.
Você teve acesso a um advogado?
Eu não tive acesso até o interrogatório e, depois, quando o encontrei, não podia falar com ele livremente. O advogado me dizia que estava sob intensa pressão. Quando eu pedi por advogados que lidam com os direitos humanos, como a Nobel da Paz Shirin Ebadi ou seus colegas, o promotor me disse que isso seria prejudicial para mim.
Você disse que dividiu a cela com outras “prisioneiras de consciência”. Que tipo de pessoa se encaixa neste perfil?
Jornalistas, blogueiros, estudantes e trabalhadores que se tornaram ativistas pelos direitos humanos e até advogados que são corajosos o bastante para defender estas outras pessoas. Por exemplo, há uma mulher chamada Nasrin Sotudeh. Ela é uma advogada que trabalhou com Shirin Ebadi e está na prisão desde setembro. Ela fez algumas greves de fome, foi acusada de crimes, como “propaganda contra o estado” e assim por diante. Duas das minhas colegas de cela, Mahvash Sabet e Fariba Kamalabadi – que pertencem à minoria religiosa “Bahais”, um dos maiores grupos não muçulmanos – também ainda estão na prisão. Nenhuma destas pessoas, que se manifestam pacificamente, deveria estar lá. Ativistas pelos direitos humanos dizem que há mais de 500 prisioneiros de consciência hoje no Irã.
Você disse que sofreu tortura branca, mas não física, como muita gente já relatou. Você acredita que tenha recebido um tratamento diferente por ser americana?
É difícil dizer. Eu sei que a tortura física ocorre no Irã e tem se tornado cada vez mais frequente desde as eleições presidenciais do ano passado. Nós ouvimos casos de pessoas que foram agredidas, abusadas sexualmente ou tiveram os pés espancados com varas. Talvez porque eu tenha duas nacionalidades eles tenham me tratado um pouquinho melhor. Mas, eu acho que os manifestos internacionais, a cobertura da mídia, os apelos de indivíduos e grupos lutando por mim é que realmente ajudaram. Por isso, ressalto a importância de lutarmos por aqueles que ainda estão presos.
Você acredita que tenha sido presa como maneira de intimidação para não falar mal do regime?
Talvez a motivação fosse política. Talvez eles quisessem me usar contra os EUA de alguma maneira. Talvez eles desejassem intimidar outros jornalistas, outras pessoas com duas nacionalidades. Talvez eles realmente não quisessem que eu terminasse o livro que eu escrevia sobre a sociedade iraniana porque eu estava entrevistando muita gente e eles não podiam realmente me controlar. Eu não precisava de tradutores, que muitas vezes são informantes do governo. Portanto, eles não podiam me controlar nem controlar as pessoas que falavam comigo.
Então, você ainda não sabe qual foi o motivo real?
Não. O governo não é nada transparente. Mas, o que eu sei é que não há liberdade de expressão no país. De acordo com os “Repórteres sem Fronteiras”, o Irã é a terceira nação do mundo com mais jornalistas presos. Atualmente, são 27. A China é a número um, mas tem 1,3 bilhões de pessoas e o Irã tem 70 milhões de pessoas.
Você mencionou o fato de que os seus captores queriam te transformar em uma agente pró-Irã. O que você acha que eles esperavam obter com a sua colaboração?
Eu ouvi casos em que eles prometiam, por exemplo, libertar um estudante se ele concordasse em reunir informações sobre outros jovens ativistas. Faziam o mesmo com prisioneiros políticos, que eram obrigados a espionar seus maridos ou mulheres. Eles tentam colocar uma pessoa contra a outra e criam muita suspeita na sociedade. Eles me disseram que queriam que eu reunisse informaçõs sobre outros jornalistas estrangeiros e diplomatas no Irã. Para isso, me deixariam fazer reportagens no país durante seis meses.
Qual é a importância do que é dito sobre o Irã em outros países? Como o governo descobre, como é o monitoramento?
Há funcionários no ministério da Cultura que vigiam setores como jornalismo e arte dentro do país. Eles também têm uma seção onde há tradutores que monitoram as notícias estrangeiras. Quando eu estava lá, eles focavam em japonês, francês, inglês, espanhol e chinês. Eu não tenho certeza sobre suas capacidades de monitoramento eletrônico de pessoas fora do país, se eles conseguem ler o meu e-mail quando eu estou nos EUA. Mas, meus interrogadores me disseram que eles têm agentes em diferentes partes do mundo. Aqui no Brasil deve haver informantes.
Que influência o Brasil tem sobre o Irã quando condena ou aconselha alguma coisa?
Eu acredito que as palavras do Brasil têm muito peso no Irã. O governo iraniano sabe que os brasileiros não costumam interferir em assuntos internos, como fazem outros países. O próprio caso da Sakineh mostra esta importância. Quando o presidente Lula o mencionou, o assunto foi parar nas manchetes dos jornais no mundo todo.
Você falava da Sakineh. Mas, o presidente Lula só a convidou para vir ao Brasil depois de sofrer bastante pressão. E também foi contra a comunidade internacional, que condenou o Irã por causa de seu programa nuclear, suspeito de ter fins militares. O que você acha deste tipo de posicionamento?
O caso da Sakineh mostra novamente o poder da mídia e de indivíduos em trazer a atenção a assuntos importantes, como as violações de direitos humanos. Eu sei que o presidente só fez aquele comentário depois de sofrer pressão. Mas, ainda assim fico contente que ele o tenha feito. Eu acredito que enquanto o Brasil se envolve com o Irã diplomatica e politicamente, também necessita fazer dos direitos humanos uma prioridade, não colocá-los em segundo ou terceiro lugar. Pode fazer isso, por exemplo, por meio da ONU. A questão dos direitos humanos deveria ter sido mais importante no governo Lula e deve ser também no novo governo. Eles devem pressionar o Irã neste sentido. Quanto à questão nuclear, eu acho que é importante conversar com o Irã porque senão aumenta a chance de uma ação militar ou um conflito. E quando não há negociação, o regime linha dura gosta de culpar outros pela falta de compromisso. O Brasil poderia continuar a negociar, mas ao mesmo tempo, os direitos humanos precisam ser mais importantes, a mais alta prioridade.
Você espera, então, que a nova presidente, Dilma Rousseff, tenha uma posição mais incisiva em relação ao assunto?
Eu realmente espero que sim. O Brasil se absteve na votação de uma resolução da ONU para não interferir em assuntos internos. Mas, se você não fizer este tipo de coisa por meio da ONU, fará como? O país tem ganhado influência no cenário internacional e tem bons laços com o Irã, portanto deveria assumir também a responsabilidade de falar sobre as violações de direitos humanos.
Você acha que o Brasil deveria parar de fazer negócios com o Irã por causa destas violações?
Eu não sou especialista no assunto, mas acredito que as companhias que negociam com o Irã deveriam deixar claro ao governo islâmico que é necessário respeitar os direitos humanos para tornar esta relação sustentável e justificável para o público brasileiro. O Irã deveria ser confrontado com o fato de que expandir qualquer tipo de relação sem falar da crise dos direitos humanos não é possível.
Você falou sobre a falta de liberdade de imprensa no Irã. Mas, aqui na América Latina, podemos observar em certos governos uma tendência de querer controlar a mídia. Isso também ocorreu no Brasil durante a campanha presidencial…
Certamente, este não é um movimento bem-vindo. Eu acho que a profissão dos jornalistas é ainda mais importante nos países fechados ou onde os governantes querem abusar de seu poder porque eles são os olhos e os ouvidos da população. Cercear a imprensa é uma maneira de violar os direitos humanos, a liberdade de expressão, que é um dos direitos universais básicos. Esta violação também está frequentemente ligada a outras violações.
O que os brasileiros poderiam fazer para ajudar a causa dos direitos humanos no Irã?
A mídia pode fazer muito ao reportar este tipo de assunto. Já os cidadãos comuns podem ajudar também, participando de abaixo-assinados, manifestações pacíficas, escrevendo cartas àqueles que fazem as leis, a oficiais da ONU e à mídia para pedir que sempre cubra o assunto. Precisamos ajudar a trazer isto à tona.
Revista “Veja”,
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