O jornalista diz que o governo argentino ataca os meios de comunicação para encobrir seus fracassos
A imprensa está na linha de tiro da política de confronto adotada pela presidente da Argentina, Cristina Kirchner. Essa é a análise de Adrián Ventura, colunista do jornal argentino La Nación e advogado constitucionalista, especialista em liberdade de imprensa. Nos últimos três anos, a relação entre os meios de comunicação e o governo na Argentina se deteriorou e culminou, segundo Ventura, em ações intimidatórias e em uma lei de imprensa restritiva, aparentada ao chavismo. Nesta semana,Ventura estará em São Paulo para participar do 1o Fórum “Democracia & Liberdade de Expressão”, promovido pelo Instituto Millenium. Por telefone, de sua casa em Buenos Aires, ele adiantou a ÉPOCA como será sua exposição no fórum.
ÉPOCA – Como o governo e a imprensa se relacionam na Argentina hoje?
– Quando Néstor Kirchner chegou ao poder, em 2003, a relação começou mal. Mas logo se iniciou um capítulo de sedução, o governo tentando subornar, cooptar os jornalistas e os meios de comunicação. Quando a linha dos meios era favorável ao governo, eles eram premiados com publicidade oficial. Os mais críticos eram rechaçados. Esse estilo de se relacionar com a imprensa durou até 2007. A partir daí as coisas pioraram. Cristina e Néstor Kirchner começaram a atacar os diários e o grupo Clarín (principal grupo de comunicação da Argentina) .
ÉPOCA – De que maneira aconteceram esses ataques à imprensa?
– Os Kirchners continuamente empregam um discurso político. Todos os dias eles criticam os meios de comunicação, acusam-nos de mentirosos. Além disso, desde agosto o governo tem assediado a Papel Prensa, uma empresa privada que existe há 30 anos e vende papel a 170 diários de todo o país. O governo deixou transparecer a intenção de intervir na Papel Prensa. Se controlar a empresa, ele vai regular o fluxo de papel entre os jornais se pressionar aqueles que criticam o governo. Por fim, houve a aprovação pelo Congresso, em outubro passado, da nova lei de radiodifusão, que impõe restrições à quantidade de veículos que cada grupo de mídia pode ter. Na Argentina há um pluralismo de mídia. São oito grupos importantes. Cada um tem muitos canais de televisão e rádios. Na prática, o que a lei faz é obrigar os grupos de comunicação a vender seus veículos no prazo de um ano. Assim empresários aliados ao governo podem comprá-los a um preço muito baixo.
ÉPOCA – Por que os Kirchners optaram pelo confronto com a imprensa?
– Os Kirchners sempre tiveram como estratégia política a confrontação e sempre governaram como se estivessem em uma campanha eleitoral permanente. Eles não querem consenso. Já entraram em confronto com os militares, os juízes, os meios de comunicação, as empresas. E, nessa sucessão de conflitos, a imprensa começou, a partir de 2007, a expor a falta de resultados da gestão Kirchner. Os Kirchners se ressentiram disso, acharam que não precisavam tolerar as críticas e partiram para o ataque contra a imprensa, sobretudo contra o grupo Clarín.
ÉPOCA – A inspeção fiscal feita no grupo Clarín, em setembro do ano passado, foi uma forma de intimidação?
– Foi uma intimidação clara. Cerca de 200 inspetores entraram de surpresa no Clarín. Não era uma inspeção para verificar as condições de trabalho, as contas. Não havia finalidade concreta na ação contra o jornal. Os inspetores nem sabiam por que estavam ali. No fim, a investigação não deu em nada, mas serviu de exemplo para a imprensa. Se o Clarín, que é o grupo mais forte, passava por isso, qualquer outro jornal também estaria sujeito a inspeções.
ÉPOCA – A proprietária do Clarín, Ernestina Herrera de Noble, responde a acusações de que seus filhos, adotivos, seriam na verdade filhos de desaparecidos políticos, vítimas da ditadura que governou a Argentina entre 1976 e 1983. Como está essa história?
– Ernestina tem dois filhos: Felipe e Marcela. Foram adotados na época da ditadura. Não se sabe quem são os pais biológicos deles, o que não quer dizer que Ernestina tenha tomado as crianças de alguém. Ela os adotou legalmente. Um apareceu em frente à casa dela, abandonado. O segundo estava em um orfanato. Na década de 1970, havia uma repressão feroz, os militares sequestravam seus opositores, matavam as mães e ficavam com os filhos delas. Davam as crianças para amigos militares ou cidadãos aliados, que os registravam como se eles fossem filhos próprios, biológicos. Não havia processo de adoção. Esse não é o caso de Ernestina. Não se sabe se os herdeiros do Clarín são filhos de desaparecidos políticos. Pode ser, mas não existem provas de que Ernestina, ao adotá-los, soubesse disso. O governo Kirchner usa essa história para tentar deslegitimar o grupo. É um elemento a mais para confrontar o Clarín.
Os Kirchners adotam a estratégia do confronto e governam como
se estivessem em campanha eleitoral permanente
ÉPOCA – Como a população argentina reage às ações do governo?
– O povo argentino está cansado do estilo dos Kirchners. O país passa por muitos problemas: desemprego, falta de segurança jurídica, constantes mudanças nas regras do jogo, impostos muito altos. Em vez de resolver os problemas, os Kirchners confrontam todo tempo e não encontram soluções. A inflação está de volta. Estamos prevendo algo entre 25% e 32% em 2010. Esse é um cálculo que não leva em conta somente os artigos de um orçamento doméstico, mas também preços de carro, por exemplo. É por isso que nas eleições legislativas de junho eles perderam a maioria no Congresso.
ÉPOCA – O senhor diz que existem semelhanças entre o programa político do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, e o dos Kirchners. Por quê?
– Há um estilo de governo parecido entre Chávez, Kirchner, Evo Morales, na Bolívia, Rafael Correa, no Equador. Todos usam o mecanismo da confrontação. Chávez tem um estilo mais duro. Ninguém se assemelha ao autoritarismo chavista. Mas o governo argentino, assim como o venezuelano, não é um governo que dialogue. Eles preferem eleger inimigos. Quando a arrecadação começou a cair em 2008, o governo elegeu os empresários do agronegócio como inimigos da pátria e tentou abruptamente aumentar muitíssimo os impostos do setor. Esse estilo se reproduz continuamente. O governo só muda de alvo.
ÉPOCA – O casal Kirchner representa alguma ameaça à alternância de poderes, às eleições livres ou à democracia?
– Apesar de ser um governo muito autoritário, não vejo risco para as eleições. O problema é que a democracia argentina ainda tem deficiências. Os partidos não são democráticos. Os recursos públicos são usados para comprar a vontade de governantes e funcionários. O governo federal é o responsável por recolher os impostos e repassá-los às províncias. Se o governador de uma província se comporta bem, os Kirchners lhe dão dinheiro para fazer obras. Mas governadores que questionam o poder federal ficam sem verba.
ÉPOCA – A atual crise diplomática das Malvinas pode ser considerada uma estratégia dos Kirchners para desviar a atenção da opinião pública da crise do país, manobra semelhante ao que fez a ditadura militar?
– Os Kirchners sabem que o povo está divorciado do governo e que a sociedade argentina não se deixa levar pelas Ilhas Malvinas como ocorreu há 30 anos. Hoje as Malvinas são um problema de política internacional. A situação pode ser útil para Cristina Kirchner porque a coloca na agenda mundial, pode ser útil a outros países da América Latina para mostrar que eles têm força para criar um bloco. Mas não acredito que o governo queira despertar a garra argentina com as Malvinas. O problema do povo argentino hoje está longe das ilhas. Está na censura, no desemprego e na inflação.
Nascido em Buenos Aires, tem 48 anos. É divorciado e tem um filho
O QUE FAZ
É colunista do jornal La Nación e professor convidado da Universidade Autônoma do México. Também é advogado constitucionalista
O QUE PUBLICOU
Uma tese de doutorado sobre a liberdade de expressão, premiada pela Universidade de Buenos Aires
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