A lei 8.666, conhecida como a Lei de Licitações, tem pouco mais de 20 anos e, agora, está no centro da maior parte dos escândalos de corrupção do país, envolvendo contratos para obras públicas. Muitos desses contratos eram considerados legais até surgirem investigações, denúncias ou indícios de enriquecimento ilícito de dirigentes de estatais ou funcionários públicos. Para especialistas, isso mostra que o país precisa modernizar a legislação e, também, a gestão desses contratos. Afinal, apesar de a Lei de Licitações datar de 1993 e já ter sofrido modificações, as normas que disciplinam a gestão das obras públicas, como as regras para os contratos administrativos, firmados entre governos e estatais com os vencedores dos leilões, adotam os mesmos preceitos há 60 anos, alertam alguns analistas.
Diante da expectativa de o governo lançar um novo programa de concessões e em meio às investigações da Operação Lava-Jato, advogados, consultores e especialistas em infraestrutura apontam soluções como os seguros para as obras e os projetos executivos detalhados, bastante difundidos nos EUA e na Europa. E defendem um maior rigor no planejamento dos projetos. Na Câmara, voltou-se a discutir um tema emperrado há décadas: a revisão da lei 8.666. Há cerca de um mês, uma comissão especial foi instalada pelo presidente da Casa, Eduardo Cunha (PMDB-RJ). A proposta é unificar os três principais modelos de licitações — a própria 8.666; o Regime Diferenciado de Contratações (RDC), usado em obras federais; e o decreto 2.745, de 1998, que regula as compras da Petrobras e que está no centro dos escândalos mais recentes de corrupção.
Seguros chegam a no máximo 10%
O jurista Modesto Carvalhosa, sócio do Carvalhosa e Eizirik Advogados e autor de livros sobre direito econômico, acredita que a melhor forma de resolver de vez o problema das licitações e contratos públicos não é nova — vigora desde 1893 nos EUA —, mas praticamente inédita no país: a criação de seguros nos contratos.
— Nos EUA e em países europeus, não se ouve falar sobre escândalos de licitação. O seguro impede a interlocução entre o poder público, as empreiteiras e fornecedores. E garante que a obra será entregue no prazo, com a qualidade contratada e sem custo adicional — disse.
Esses seguros, chamados de surety bonds e performance bonds, são de responsabilidade da empresa contratante. Quando a empreiteira passa por um problema, a seguradora, temendo a punição, assume a obra ou contrata outra empresa. A própria seguradora fiscaliza a obra. E esse tipo de seguro exige que se empenhe a verba orçamentária para a obra pública, garantindo o pagamento pelo governo.
— Todas as leis em vigor que tratam da matéria da concorrência, da licitação e de contratação com o poder público preveem a constituição de garantia para a contratação e execução dos contratos, ou seja, é desnecessária nova lei para estabelecer esses seguros — afirmou.
Segundo o consultor em engenharia de custos Aldo Dórea Mattos, nos EUA o performance bond cobre 100% da obra pública em caso de falência ou dificuldade da construtora. Enquanto isso, no Brasil, a lei prevê que o seguro cubra 5% do valor, podendo chegar a 10% em casos de extrema complexidade. Quando a lei 8.666 foi promulgada, os parlamentares não quiseram incluir os 100%, lembra:
— A explicação é que as seguradoras teriam um poder absurdo e poderiam decidir quem tocaria as obras licitadas. E a obra ficaria mais cara. Assim, ficamos com mais uma carência em nosso modelo.
Para o advogado Massami Uyeda Junior, do escritório Arap, Nishi & Uyeda, o mercado de seguros no Brasil tem capacidade para absorver a exigência de 100% e poderia ser ainda mais desenvolvido com uma regra desse tipo.
O jurista Roberto Baungartner, vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional (IBDC), diz que também é preciso sanar o problema do atraso dos pagamentos dos governos, que por lei podem ficar inadimplentes por até 90 dias:
— Se os pagamentos dos governos fossem sempre em dia, haveria redução de 10% nos valores dos contratos.
Para a advogada Cláudia Bonelli, do escritório TozziniFreire, a lei 8.666 foi concebida de uma maneira muito formal e detalhista, com o objetivo de evitar a corrupção. Mas esse “remédio forte” acabou tendo um efeito colateral:
— A lei amarrou todos os envolvidos no processo: gestor, empresas privadas, terceiros, partindo do pressuposto que todo mundo poderia fazer alguma coisa errada. O objetivo era garantir uma licitação mais justa, mais isonômica. Mas o resultado é que o processo para fazer a contratação de uma obra pública ficou difícil, lento.
Na opinião do jurista Marçal Justen Filho, a fonte de problemas não é a licitação, mas a gestão dos contratos depois.
— Se a autoridade tem poder de decidir se ocorrerá ou não o pagamento, sem maior controle ou fiscalização, haverá incentivo à corrupção. Houve reformas nas leis de licitação, mas a disciplina dos contratos administrativos é basicamente a mesma há mais de 60 anos — disse ele, que defende gestão similar à do setor privado.
Alguns analistas acreditam que o RDC, que foi criado para acelerar as obras da Copa e depois ampliado, pode facilitar a corrupção, pois, como a contratação é mais simples e a obra não tem projeto executivo (que custa de 3% a 5% do valor total), abre-se margem para aditivos.
A lei 8.666 prevê um projeto básico, mas o texto não explica o que se deve incluir. O passo seguinte de quem vence a licitação é subcontratar projetistas autônomos para a “campanha de campo”. Mattos lembra que, embora aditivo não seja sinônimo de corrupção, a necessidade de usar o instrumento para adaptar a obra indica que as condições retratadas no projeto não condizem com as de campo.
Ajuda de empreiteiros da Lava-jato
Na última grande discussão sobre o tema no Congresso, entre 2013 e 2014, o Senado não chegou a um consenso. Agora, após uma extensa lista de audiências públicas em curso, uma delas realizada ontem, o texto final deverá ser apresentado pelo relator, deputado Mario Lúcio Heringer (PDT-MG), e vai direto para o plenário, com previsão de regime de urgência. Heringer quer reforçar a maior parte daquilo que a 8.666 já prevê, trazendo para essa mesma lei o RDC e o modelo de compras da Petrobras. Não bastassem as polêmicas, o presidente da comissão especial, deputado Carlos Marun (PMDB-MS), pretende convocar empreiteiros que foram presos na Lava-Jato para colaborar:
— Eles é que vão definir o que vai acontecer? Não, vai ser a Casa, mas alguns deles podem trazer formas importantes que nos ajudem a pelo menos diminuir as fraudes que acontecem.
Para Marun, a Lava-Jato criou uma pressão da sociedade sobre o tema, com ambiente para debater o modelo de contratações da Petrobras, criado para que ela pudesse concorrer com outras petrolíferas.
— Por que possibilitar que a Petrobras, na hora de contratar uma obra de R$ 1 bilhão, tenha mais celeridade que a prefeitura de Tacuru (MS) no momento de contratar R$ 100 mil? Temos de fazer uma lei que busque a celeridade, com transparência.
Professor de Direito da FGV-SP, Carlos Ari Sundfeld acredita que é preciso combater a baixa qualidade da administração pública, senão é como “colocar cerca elétrica em casa, mas deixar a porta aberta”.
Fonte: O Globo.
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