Em seu discurso de posse, o então ministro Joaquim Levy resgatou Raymundo Faoro e o seu diagnóstico sobre o Estado patrimonialista, no qual o setor público coordena parte relevante das decisões de investimento, interfere discricionariamente na economia e concede benefícios a empresas selecionadas. Em uma economia de mercado, porém, as empresas devem sobreviver por serem mais produtivas, não pelo acesso privilegiado ao Executivo.
Pode-se argumentar que esse diagnóstico seja mais de intensidade, afinal existem exemplos de políticas discricionárias em todos os países. No Brasil, porém, a excessiva sensibilidade do governo aos grupos de interesse resulta na profusão de regimes especiais, na complexidade do ambiente de negócios, decorrente da multiplicidade de exceções, e no baixo crescimento da produtividade, resultado da proteção a empresas ineficientes.
Na década de 1970, na sequência da crise do petróleo, o governo Geisel procurou preservar o crescimento dos anos anteriores expandindo os benefícios e as proteções ao setor produtivo. O resultado foi o progressivo desequilíbrio da economia que, em conjunto com um cenário externo desfavorável, resultou na maior recessão do século, seguida de uma década de baixo crescimento, aumento da inflação e piora da desigualdade de renda.
A crise dos anos 1980 foi superada com uma longa agenda de reformas: abertura comercial, estabilização da economia, privatizações, desenvolvimento dos mercados de crédito e de capitais e fortalecimento de agências do governo, do Banco Central ao embrião de agências reguladoras. Essa agenda e um cenário externo favorável permitiram maior crescimento econômico na década de 2000.
O fracasso dos anos 1980, no entanto, foi de pouca valia. Em 2009, retomou-se a agenda patrimonialista. O crédito subsidiado do BNDES passou de 5,8%, em 2007, a 11,6% do PIB, em 2014, e os benefícios fiscais atingiram quase 5% do PIB, ante menos de 2% em 2003. Medidas de proteção à produção e conteúdo nacional foram adotadas.
Benefícios setoriais foram concedidos sem a contrapartida de metas de desempenho e pouca transparência sobre os seus impactos. As políticas de proteção prejudicaram os setores à frente na cadeia produtiva, obrigados a comprar insumos e bens de capital ineficientes, o que reduziu sua produtividade. A desoneração tributária e os créditos subsidiados agravaram a deterioração fiscal e resultaram na combinação de recessão prolongada com inflação elevada.
Apesar do discurso de posse do ex-ministro Levy, pouco se avançou nas reformas. Reduziu-se marginalmente a concessão de benefícios, porém a estrutura de proteções permaneceu intacta. Ao menos, conseguiu-se evitar as demandas por novos privilégios, um avanço tendo em vista as pressões recentes, como no caso da siderurgia ou da indústria automobilística.
Alguns sábios, com argumentos de ocasião, que negam ter apoiado a política econômica dos últimos anos, atribuem os problemas à crise externa e à incompetência da gestão, e defendem, mais uma vez, que o poder público seja sensível aos interesses oportunistas. Curiosamente, muitos desses sábios criticaram o foco nas políticas sociais que resultou no Bolsa Família e custa 0,5% do PIB.
O desafio do novo ministro da Fazenda, Nelson Barbosa, é maior do que foi o de Levy. A deterioração da economia e a escolha da equipe aumenta a incerteza sobre os ajustes necessários. Esperemos que a substituição não decorra das demandas pela expansão das políticas de proteção setorial ou de novas renegociações das dívidas dos governos locais. A sensibilidade aos grupos de interesse – do setor privado e das corporações públicas – resultou na grave recessão que se iniciou em 2014. Medidas oportunistas, como a utilização de depósitos judiciais para financiar gastos públicos, apenas adiam a hora de enfrentar os problemas fiscais, agravando-os. Alguns Estados chegam ao extremo de utilizar depósitos decorrentes de ações entre partes privadas. A recusa em enfrentar reformas necessárias, entre elas a da Previdência e da gestão pública, colaborou com a crise fiscal.
Na ausência de medidas que interrompam a trajetória de aumento dos gastos públicos acima da renda nacional, o desequilíbrio crescente resultará em mais inflação, ou, pior ainda, na moratória da dívida pública e uma crise ainda mais grave, com o retrocesso dos ganhos sociais da década passada.
A superação da crise requer reformas que estimulem a concorrência e os ganhos de produtividade, por meio de melhoras no chão de fábrica; e da redução da burocracia, em vez dos benefícios concedidos pelo governo.
Existe relativo consenso técnico sobre as reformas tributárias, de comércio exterior e da previdência e assistência social, cujos princípios deveriam convergir para os observados nos principais países da OCDE. A revisão dos programas públicos deveria preservar as políticas universais, como saúde e educação, e as que protegem as famílias mais vulneráveis, ao rever ou mesmo extinguir as ineficazes ou que beneficiam os grupos com maior renda.
Políticas de proteção setorial devem ser adotadas apenas nos casos em que exista evidência de que os ganhos sociais superam o seu custo de oportunidade, com metas de desempenho, avaliações periódicas de resultados e prazo para a sua extinção – seja porque foram eficazes e não mais são necessárias, seja porque fracassaram.
Além disso, é preciso aperfeiçoar a governança e o controle democrático das instituições que se beneficiam de recursos arrecadados da sociedade, como empresas públicas e seus fundos de pensão, FGTS, Sistema S, FAT, sindicatos patronais e de trabalhadores. Os sindicatos, por exemplo, deveriam ter balanços auditados por instituições independentes. A relação entre o poder público e o setor privado deveria se limitar a audiências públicas ou a reuniões com atas públicas.
Uma política econômica sensível aos grupos de interesse, em detrimento do benefício público, resultará no agravamento da crise. Marx complementou Hegel ao afirmar que os fatos da história e suas personagens ocorrem, por assim dizer, duas vezes: a primeira como tragédia, a segunda como farsa. Esqueceu que a farsa pode ser igualmente trágica.
* Com Marcos Lisboa
Fonte: O Estado de S. Paulo, 3 de janeiro de 2016
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