Um pouco de história…
A noção de “coisa pública” se refere a uma esfera da ação humana coletiva. Isto é, refere-se à existência de uma esfera da ação na qual se pactuam os acordos de convivência em comunidade. Nesse “espaço” tratam-se os assuntos de interesse da coletividade, os quais não se devem confundir com os interesses privados dos membros da coletividade.
Na Grécia antiga esse espaço público se materializava na Ágora, a praça principal da pólis (cidade grega). O termo pólis deu origem etimológica à palavra política. Política, no sentido que os gregos atribuíam a esse termo, significava a participação do cidadão grego nos processos de tomada de decisão coletiva sobre o destino da pólis. Essas decisões eram tomadas em assembleias populares que aconteciam nas Ágoras.
As Ágoras eram espaços físicos cercados por edificações de caráter público. Como espaço urbano, constituíam-se em expressões máximas da esfera pública. Na Ágora o cidadão grego convivia com seus pares, discutia política e participava dos tribunais populares.
Na democracia grega não havia eleições e os magistrados eram escolhidos por sorteio, já que os gregos acreditavam que o mecanismo da eleição levaria à aristocracia. Com direito à palavra e ao voto, os cidadãos homens, maiores de 21 anos reuniam-se na ágora, compondo a assembleia política (Eclésia) para ouvir os orientadores do povo (demagogos).
Essa forma de deliberar coletivamente sobre o destino da pólis era chamada Demokratia (democracia direta); os cidadãos (demos) detinham o poder político (kratos) do Estado.
Em 250 a.C. os romanos invadiram a Grécia e absorveram seu legado cultural. Originalmente Roma era monárquica. A substituição da Monarquia pela República foi protagonizada pelos patrícios, grandes proprietários de terra e credores dos plebeus. Compunham uma elite que desempenhava funções públicas; militares; religiosas; no aparato da justiça ou da administração. Os patrícios dominavam a cena política, pois pertenciam às famílias mais antigas de Roma e descendiam dos chefes tribais do período pré-romano. Criaram as instituições romanas, base da República, como forma de assegurarem-se do monopólio do poder em detrimento da realeza.
A base da República romana era o Senado, composto por trezentos patrícios aos quais cabia a responsabilidade de propor leis; preservar a integridade da tradição e da religião; supervisionar as finanças públicas; conduzir a política externa e administrar as províncias. A presidência do Senado cabia ao magistrado, que o convocava. O magistrado podia ser um cônsul, um pretor ou um tribuno. O cargo de senador era vitalício. Os magistrados eram Cônsules, detentores de um poder equivalente ao dos antigos reis. Dois cônsules eram eleitos para um período de um ano com atribuições de comando do exército, poder de convocar o Senado e presidir os cultos. Em situações de crise os cônsules indicavam um ditador, que governava com poderes absolutos por no máximo seis meses.
O poder executivo era exercido pelos magistrados, em geral, patrícios. Com exceção do censor, todos os magistrados eram eleitos pela Assembléia Centuriata para um mandato de um ano. As magistraturas eram coletivas e exigiam a presença de dois ou mais magistrados para cada cargo. Dois Pretores ministravam a justiça. O Pretor urbano administrava a justiça para as cidades e o Pretor peregrino para o campo e para estrangeiros. Aos Censores cabia a função de recensear os cidadãos; calcular o nível de riqueza de cada um e vigiar a conduta moral do povo. Aos Questores cabia administrar as finanças públicas e aos Tribunos da plebe cabia vetar as leis contrárias aos interesses da plebe, menos em épocas de guerras ou de graves perturbações sociais, quando todas as leis ficavam sob o controle exclusivo do ditador. Os tribunos da plebe surgiram em função das lutas da plebe por seus direitos. Eles eram considerados invioláveis e quem os agredisse era condenado à morte.
Na República Romana existiam duas assembléias que votavam as leis propostas pelo senado. A Assembleia Curiata, e a Assembleia Centuriata. A primeira perdeu quase toda a sua importância durante a República a segunda era formada pelas centúrias (divisões políticas e militares compostas por cem cidadãos), que, de fato, discutiam e votavam as propostas.
Na Grécia antiga e na primeira fase da República romana não havia leis escritas. Com a invenção das leis escritas, elemento de contenção de arbitrariedades, os romanos consolidaram o patamar original do ordenamento político e jurídico da civilização ocidental. Dentre as principais leis romanas estão a: a) Leis das Doze Tábuas (450 a.C.), que definia que os decênviros (juízes especiais) decretariam leis válidas para patrícios e plebeus; b) Lei Licínia, que Aboliu a escravidão por dívidas e ainda concedeu aos plebeus a participação no consulado; c) Lei Ogúlnia (300 a.C.) que concedeu aos plebeus o direito de exercer a Magistratura de Pontífice Máximo; e, d) a Lei Ortênsia, que definiu que as leis aprovadas pela Assembléia da Plebe (plebiscito = “a plebe aceita”) tivessem validade para todo o Estado.
Embora não sendo isento de contradições e da manutenção de privilégios às elites, o ordenamento jurídico, político e institucional da República Romana garantiu, de fato, direitos à plebe e a contenção do exercício arbitrário do poder. E, mais importante do que isso, esse modelo serviu de inspiração e arcabouço estrutural para fundação da idéia moderna de República que se constitui na Europa como consequência do nascimento do Estado Liberal moderno, após as revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII.
Os romanos deram origem à vida social regulada por leis escritas e organizada em torno de uma ordem militar e administrativa, e por um senado eleito pelos cidadãos. Essas instituições materializam a idéia de res publica como espaço de atuação política dos cidadãos voltados para a discussão e solução dos problemas coletivos.
Ao longo de mil anos o Império Romano expandiu-se por toda a Europa, o norte da África e parte da Ásia, difundindo pelo mundo seus valores culturais e o sistema político e institucional da República Romana. Após a decadência do Império, um período de cerca de mil anos de feudalismo alterou profundamente as relações sociais e de poder em toda essa região. O legado republicano desenvolvido em Roma submergiu por todo esse tempo, para somente renascer na Europa a partir do século XVII.
Com a decadência do Império Romano expande-se o Cristianismo pelo Ocidente. Antes do advento do Cristianismo, religião e poder andaram unidos por longo período histórico em diversas sociedades. As primeiras Doutrinas Católicas sobre Soberania, notadamente a partir da obra de Santo Agostinho intitulada “A cidade e Deus”, propugnavam a separação entre a autoridade temporal do imperador (Potestas) e autoridade sobre assuntos morais e religiosos o Papa (Auctoritas). Essa doutrina é conhecida com Lei das Duas Espadas.
No mundo Islâmico, cuja matriz está nas Escrituras Sagradas do Velho Testamento – mesma raiz do cristianismo -, não houve separação entre as autoridades política e religiosa. Não há, no mundo muçulmano, uma Igreja Islâmica institucionalizada e hierarquizada como a Igreja Católica. A guerra santa pela conversão dos pagãos (Jihad Islâmica), para os muçulmanos, é missão dos governantes. A cultura política dos países de tradição islâmica resiste, por influência dessas circunstâncias, até os dias de hoje, ao modelo institucional predominante nos sistemas políticos das nações de tradição judaico/cristã. Mesmo nações que se guiam pelos preceitos islâmicos, no entanto, adotam formas ditas republicanas de institucionalização do poder político (vide Irã; uma república teocrática).
Com o passar do tempo o princípio da separação da autoridade do Papa e do Imperador, criado pela teologia católica para delimitar os espaços políticos da Igreja em sua relação com o Império Romano decadente, terminou influenciando a separação entre a Religião e Estado no mundo ocidental moderno. As ex-colônias européias, posteriormente foram, uma a uma, adotando o novo modelo de organização política e institucional que se difundiu por toda sociedade ocidental a partir das revoluções Gloriosa e Francesa e da Independência dos EUA.
Segundo a concepção moderna do Estado, a religião é assunto da esfera privada do cidadão, devendo o Estado ser laico. Isto é, isento de posicionamento religioso, visto ser sua função representar e governar no interesse de todos, independentemente da posição religiosa de cada membro ou da maioria da sociedade e, especialmente, da posição religiosa do governante de ocasião. Esse mesmo princípio republicano vale para inclinações ideológicas, a condição étnica, a posição social ou outras formas de estratificação social existentes. O Estado deve tratar a todos como iguais (postulado da igualdade), e governar em nome do interesse geral da nação, segundo a moderna Teoria do Estado de inspiração liberal.
Maquiavel, pensador florentino que viveu na transição dos séculos XV e XVI, é fundador do pensamento político moderno. Foi ele quem, pela primeira vez, formulou a idéia de que ética política deveria se libertar das doutrinas teocráticas. Maquiavel defendia a idéia de que as liberdades civis eram a chave para a constituição de uma forma republicana de governo.
A República Liberal
O Estado Liberal Moderno surgiu em oposição ao Absolutismo; marcado pela contestação ao direito divino dos reis, à hereditariedade na transmissão do poder e ao sistema de religião oficial do Estado. Dentre seus princípios incluem-se a defesa dos direitos individuais e civis, como o direito à vida, à liberdade, à propriedade privada e o governo baseado no consentimento dos governados e escolhido através de eleições livres, assim como na igualdade de todos perante a lei. O princípio da soberania da lei, inclusive sobre o poder dos reis, foi formulado por Montesquieu na obra intitulada “O espírito das leis”, na qual esse pensador defende a tese de que o governo ‘natural’ é aquele que melhor corresponde à vontade das pessoas em favor do qual é estabelecido.
A noção contemporânea de República, portanto, assenta-se sobre um conjunto de idéias filosóficas e valores básicos que, em síntese, seriam:
a) O ordenamento institucional das sociedades a partir de estruturas políticas e jurídicas representativas e impessoais, cujas funções e atribuições são definidas em lei (Constituição);
b) A soberania do povo sobre o Estado e a Lei;
c) A proteção do indivíduo contra o excesso de poder do governo e dos governantes;
d) O caráter abrangente das leis, criadas por representantes eleitos; válidas igualitariamente para todos os cidadãos, a partir da idéia que todos são “qualquer um” (inclusive Lula e Sarney, portanto); inexistindo indivíduos de “sangue azul”, predestinados ao governo vitalício por desígnio divino e merecedores de privilégios interditados aos demais membros da sociedade;
e) A separação clara entre as esferas pública e privada, de forma a impedir que o indivíduo que exerce a função pública, usurpe o poder em benefício próprio ou dos seus, transformando o Estado em propriedade privada ou dele se valendo como se o fosse;
f) A transitoriedade dos mandatos representativos dos legisladores e, especialmente, dos mandatários de cargos executivos, sempre tentados à perpetuação no poder.
(Texto de Paulo G. M. De Moura)
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fale mais nao esta claro