Passei as últimas duas décadas estudando as tendências seculares da economia e da política no Brasil. Publiquei uma síntese de todo este trabalho em “História da Riqueza no Brasil”, lançada em outubro passado.
Foi um exercício constante de afastamento tanto das conjunturas de curto e médio prazo quanto dos instrumentos usuais de análise empregados tanto por economistas quanto por cientistas políticos para entender o país.
A busca das linhas seculares, das constantes mais duradouras, ainda que sempre baseadas nas novas possibilidades da econometria e das comparações numéricas com o ocidente no que se refere à organização política, acabou por deixar suas marcas em minhas concepções analíticas – e nas relações com a evolução da produção acadêmica.
Em minha área de especialização original, a Ciência Política, as últimas duas décadas foram marcadas pela difusão dos estudos baseados na noção de rational choice e da Teoria dos Jogos como instrumentos de análise; no caso da economia, pelo domínio de um modelo analítico montado sobre o equilíbrio macroeconômico, no qual está implícita a suposição de que os agentes relevantes perceberão como necessário o equilíbrio das contas públicas do país.
Essas duas dominantes em suas áreas pressupõem como universal uma racionalidade que, do ponto de vista histórico, cobre apenas a parte mais recente de uma longa construção. Não haveria problemas entre longo prazo e tal evolução se a atual construção nacional fosse firme, se os ecos do passado não se fizessem mais sentir – mas tal sentimento me falta.
O longo convívio com as tendências de longo prazo gerou uma fissura muito grande entre o modo de ver fundado na História que desenvolvi e a racionalidade suposta na análise acadêmica especializada: tenho dúvidas de monta cada vez que me deparo com os estudos de conjuntura. Também tenho muitas dificuldades para fazer-me entender quando coloco essas dúvidas nas conversas com alguns amigos queridos, especialmente aqueles que trabalham com análises de conjuntura ou riscos.
Parte desse ruído é estrutural. É um fato inescapável que o trabalho com a História exige um total afastamento da ideia de futuro – enquanto as análises de risco político e econômico são puramente conjecturas sobre o futuro. Essa cisão não se vence facilmente. Estudar cinco séculos de passado não gera a mais ínfima capacidade de previsão – o exato contrário das necessidades básicas de cientistas políticos ou economistas que se envolvem com projeções sobre o país.
Esses ruídos poderiam ser mitigados com vagar, não fosse um fato essencial: 2018 é ano de eleições. O ano das escolhas. Aquele em que o soberano maior da teoria, o cidadão, aparece para dar seu veredito sobre os eventos do mandato anterior e indicar um representante que leve a nação para o caminho que apontar durante o próximo termo.
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Este momento fundamental que liga passado e futuro num ato presente vai acontecer numa conjuntura que tem seus aspectos próprios. O mais conspícuo vem do passado recente: a gritante diferença entre o que foi a expressão da vontade popular em 2014 e o que veio em seguida.
A eleita prometeu continuidade do progresso econômico com equilíbrio fiscal. Desde o primeiro dia aconteceu uma pesada recessão acompanhada de descontrole das contas. A combinação da diferença entre promessa vinculatória entre representante e representados com a percepção de caos turbinou o impedimento.
Nesse caminho houve uma proeminência fundamental. As instituições de governo não ligadas ao voto propalaram um modo de ver que se tornou geral: a ideia de que a ação dos representantes eleitos no controle do Estado gerou, mais do que ineficácia e corrupção, também os erros estratégicos que levaram a Nação a viver uma gigantesca recessão num momento em que a economia mundial se recuperava.
Justificou-se assim uma disjuntiva forte entre as necessidades técnicas da condução do Estado com os determinantes da soberania popular nessa condução – em detrimento da última. Ao longo dos últimos quatro anos se construiu uma dupla ruptura entre aquilo que saiu das urnas e aquilo que foi o governo. O buraco foi coberto em linguagem, digamos, “técnica” – as aspas estão aqui apenas para reforçar o hiato.
Este hiato guarda relação analógica com aquele entre minhas impressões pessoais nutridas no contato com a História e aquele da dominante nas áreas especializadas.
Sei que esse ruído deve se resolver nas urnas. Mas a seu modo: não exatamente pela ação das instituições, mas do único reservado para os instituidores: o voto que indica o caminho para o próximo mandatário.
Não tenho a mais vaga sensação de qual será esta expressão. Não pretendo ter.
Mas tomei a decisão de, na medida do que puder, escrever sobre o ano tanto quanto possa. Sem outro objetivo que não o de dividir com os leitores do Instituto Millenium meus descompassos, meus ruídos, minhas perplexidades de pessoa que se dedicou ao longo prazo com a complexa realidade da conjuntura atual.
Tudo gira em torno de uma questão, que funde séculos e futuro no ano presente: Haverá nova compatibilidade entre voto e governo capaz de regenerar a ligação esgarçada nos últimos quatro anos?
Como brasileiro, desejo muito que sim. Mas tenho lá meus sentimentos de que vai ser preciso lidar com a estrutura efetiva da cisão. Para fazer isso sem perder o foco, procurarei sempre refletir sobre a real indagação desta eleição: como o soberano popular vai se manifestar sobre o duplo descompasso de uma promessa frustrada pela recessão e de uma argumentação técnica que, afinal, justificou o afastamento da eleita frustradora?
Foco, mas foco de historiador. Começando pela parte que agora se manifesta, do eleitor, esta será a primeira eleição no Brasil na qual a alfabetização universal formará a base: há apenas 20 anos o país chegou ao ponto de colocar todas as crianças na escola – com quase dois séculos de atraso em relação aos países de ponta do ocidente, mas quase tudo obra republicana. Mas chegou, e o eleitorado tem algo em torno de 90% de alfabetizados.
Este período de 20 anos de crianças na escola coincide com o período histórico de existência da internet – e é basicamente nela que a maioria da população não apenas se informa, mas usa para fazer correr o jogo da opinião pública. Com independência de meios e de formação das alternativas.
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Também é este um período de coincidência entre as condições de cidadão e eleitor na história nacional. Por um século, entre 1881 e 1985, a proibição de voto dos analfabetos se constituiu – na contramão do ocidente – no principal meio pelo qual a maioria dos cidadãos perdeu a condição de eleitor (a proibição do voto feminino, outra forma de exclusão maciça, terminou em 1934).
Para o que interessa – o exercício do voto – trata-se de um universo dotado finalmente de uniformidade cívica. Portanto, que deveria se comportar segundo os pressupostos técnicos de racionalidade que presidem a análise acadêmica.
Mas esta realidade não é exatamente aquela dominante em muitas instituições do governo que deve seguir a determinação dos eleitores, que ainda são calibradas por leis e costumes influenciados pela era anterior da exclusão. Nela, para que a democracia funcionasse a contento sem o voto universal, era necessário um cerimonial ritual, destinado a dar substância à ligação do eleitor com o eleito. Tal cerimonial previa muitos atos, que iam desde a retórica empolada dos candidatos em comícios até os sacramentos da justiça eleitoral com seus diplomas e confirmações.
Uma frase resumia o sentido do ritual: “O povo não sabe votar”. Daí o caráter pedagógico dos signos e a linguagem especializada nos atos rituais, destinados a ensinar. Tal o sentido da tutela: transformar um rito de sagração em simulacro da expressão efetiva da vontade soberana – na ausência de redistribuição efetiva de poder com base no voto geral.
Tal impressão de atraso relativo nutre meu desconforto com o que vem pela frente em 2018. Dito em termos técnicos, é hipótese igualmente racional aquela de que o fosso se amplie com o resultado eleitoral. Vou lidar com ela – ainda que seja para a esconjurar. A partir de agora, espero dividir este trabalho contigo, caro leitor. Tudo dando certo, para que possamos empregar o ato eleitoral para reunificar a nação num todo.
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