Há muito boa parte dos humanos sabemos que é-nos impossível perceber objetos e fenômenos naturais sem mediação intelectiva. Mediação esta materializada por um sem número de artefatos por nós mesmos produzidos em nosso processo de sobrevivência e expansão de domínio: palavras, teorias, religiões, preferências, entre outras. Um dos fundamentos do método científico é a redução e explicitação dos mediadores intelectivos utilizados para a realização de experimentos reproduzíveis que permitam afirmar que, dado o contexto gama, se alfa ocorrer, delta será a resultante. Como diria certa metáforas não muito utilizada contemporaneamente: retirar os véus de Maya. Feliz ou infelizmente a desilusão completa é inacessível a nossa espécie.
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Em 26/12/1991 a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas foi dissolvida. Acontecimento ápice do processo iniciado em março de 1921 em Kronstadt e anunciado ao mundo com a queda do muro de Berlin em 09/11/1989. Um dos maiores aparatos totalitários coletivistas já criados por membros de nossa espécie teve sua superestrutura de coordenação e controle transmutado, não destruído.
Paralelamente, nos anos 1970 e 1980, no ápice disputa global chamada “guerra fria”, a indústria de guerra produz uma forma descentralizada e distribuída de circulação de dados e informações. O modelo básico objetivava construir uma infraestrutura de comunicação onde se um pedaço da mesma fosse silenciada, a totalidade continuaria em funcionamento, garantindo que a informação original não se perdesse em sua totalidade e a mesma fosse entregue ao destinatário. Em 1990 essa infraestrutura denominada Internet chega ao mercado privado e, por conseguinte, a bilhões de indivíduos.
Ambos fenômenos possibilitaram a estruturação de uma ampla gama de teorias retrospectivas (explicações sobre o colapso do paraíso coletivista chamado comunismo) e prospectivas (o que fazer sem a existência de tal paraíso). Em cada uma destas duas abstrações, há também diversas especificidades: das negações até as múltiplas misturas.
A vida segue em frente e os que estavam acostumamos com os discursos e práticas baseados na disputa explícita entre os que queriam impor seu paraíso e os que resistiam a este tiverem que ou se adaptar a um processo de disputa mais discreto, ou a se agarrar ao mecanismo anterior. Alguns dos filhos e netos dessa geração desenvolveram produtos tecnológicos que, utilizando-se da infraestrutura chamada internet, permitem que indivíduos e grupos produzam e distribuam dados e informações sem a mediação de nenhum indivíduo ou grupo que imponha sua vontade ou perspectiva. Algo que nunca na história de nossa espécie havia sido operacionalizado, apenas teorizado e desejado por todos que prezam pela liberdade de pensar e comunicar seus pensamentos.
Outros dos filhos e netos esforçaram-se e esforçam-se para criar e estabilizar uma superestrutura burocrática europeia que, à moda do que ocorria na URSS, conforme as preferências nacionais e subnacionais em torno de um “interesse comum” europeu. A ideia da criação de um Estados Unidos da Europa não é nova e foi bastante criticada, por Trotsky inclusive (aquele que ordenou abater os revoltosos de Kronstadt como se perdizes fossem). Convém salientar que este mesmo grupo de filhos e netos está inserido na superestrutura denominada Organização das Nações Unidas e suas subsidiárias.
Os prognósticos otimistas elaborados após o colapso da superestrutura da Cortina de Ferro ignoravam a continuidade da existência (persistência) do estado (governo) moderno. Com grande precisão e concisão em 1918 V.I.Ulianov afirmara que “quando aparece um grupo especial de homens dedicados exclusivamente a governar e que, para governar, precisam de um aparelho especial de coerção para submeter a vontade de outros pela força – cárceres, grupos especiais de homens, exércitos, etc, é este o momento em que surge o Estado”.
Das proclamadas “aldeia global” e extinção das fronteiras nacionais, o que de fato existe operacionalmente é a possiblidade de produção e circulação de dados e informações por parte de indivíduos e grupos apesar da vontade das pessoas que compõem o estado ou de outras formas de agir da mentalidade estatista.
O ano de 2022 chegou. Como de hábito, renovam-se as esperanças. No contexto atual, a esperança fundamental é a superação das restrições estatais às ações individuais fundamentadas no combate à circulação do novo Coronavirus (sarscov-2). A outra é que mais pessoas, mediante suas experiências concretas, retirem o véu relacionado ao estado (governo) e ajam no sentido das liberdades econômica e de expressão.
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