A Constituição brasileira de 1988 é um belo texto, mas legalmente frágil. Imaginou um mundo ideal, esquecendo amargas cruezas de um país continental. Sim, é sabido que não há boa lei sem bom texto normativo. Todavia, entre o texto da norma e a realidade da vida, há um hiato profundo; tão fundo que, muitas vezes, impossibilita ver o chão, perdendo o olhar entre nuvens de ilusão. Logo, quando o legislador passa a levitar sobre abstrações teóricas, a lei perde concretude sistêmica, passando a regrar sonhos e, não, situações reais. No frenético correr dos dias, mais de 30 anos se passaram, a exaltar um constitucionalismo que fala muito para entregar eloquentes injustiças práticas.
Os fatos não deixam mentir. A Constituição promete dignidade humana, enquanto milhões de brasileiros vivem em miséria absoluta. Diz que a saúde é direito de todos e dever do Estado, mas faltam médicos, medicamentos e hospitais. Garante o pleno exercício dos direitos culturais, quando é incapaz de ensinar matemática e português a nossas crianças. Estabelece a moralidade como princípio republicano, mas entrega impunidade a corruptos e corruptores. Ou seja, a Constituição de 1988 regra um país que simplesmente não existe; a realidade efetiva é outra; somos um povo que olhamos o brilho constitucional, mas apenas encontramos o opaco de uma realidade triste.
As graves consequências da referida desconexão normativa estão aí aos olhos de todos. A decadência institucional brasileira está chegando a um ponto de saturação. Os metais que sustentam o sistema republicano estão em vias de derreter. Ora, não existe constitucionalismo autêntico sem firmes e inegociáveis valores ético-políticos. A Constituição desenha a democracia; a política institucional a torna verdade pulsante ou mera farsa normativa. Aqui, oportuno lembrar a alta expressão de Aharon Barak, ex-presidente do Tribunal Supremo de Israel, no sentido de que o juiz constitucional deve ser “uma ponte entre a vida e o direito”. Sem tal ponte, vidas injustas, direitos despedaçados.
Diante do recorrente desprestígio à Constituição, o cidadão brasileiro, honesto e trabalhador, não mais suporta ser enganado. Não mais confia na política e muito menos nos políticos. Os poucos – que ainda merecem respeito – são insuficientes para manter a crença nas instituições. Infelizmente, a democracia foi tomada de assalto pela imoralidade radical e pela estupidez histriônica. Mais do que comprometer conquistas democráticas, o fenômeno em curso faz ruína de pilares fundantes da civilização, fazendo entoar a barbárie hostil sobre os postulados da razão pensante, da ordem, da decência de procedimentos, do entendimento e da paz social.
Há uma marcha destrutiva no quadrante atual da história. O impressionante é que aqueles capazes de reagir com altura e altivez, em sua vasta maioria, se omitem entre lençóis de comodismo, apatia ou covardia. Fazem de conta que o problema não é com eles ou se apegam na vã ilusão de que a tragédia não irá atingi-los. Ora, quando a noite cai, a escuridão não separa tolos, ingênuos ou covardes. E, assim, no vácuo da virtude, os dias vão passando, tornando problemas remediáveis em cancros mortais.
Silenciosamente, órgão vitais da democracia constitucional vão perdendo vitalidade, apagando-se como velas sem pavio. Sem cortinas, após autoevidentes esquemas de corrupção – como o “mensalão” e o “petrolão” –, o mínimo que se esperava era que os envolvidos jamais voltassem a transitar pela política democrática. Afinal, democracia requer idoneidade e retidão de caráter. Aliás, caberia aos partidos políticos expulsar todos aqueles envolvidos com atos ilícitos ou contrários à ética pública. Objetivamente, a filiação partidária, como condição constitucional de elegibilidade, impõe aos partidos o dever de proteger a democracia de políticos ou candidatos inaptos ao exercício digno da representação popular.
Para o caso dos partidos adotarem reprováveis posturas coniventes, há uma instância intransponível: o artigo 37 da Constituição estabelece a moralidade como princípio fundante da administração pública direta ou indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Em outras palavras, na eventualidade de uma candidatura ostensivamente imoral ou lesiva à ética pública, caberá ao Supremo Tribunal Federal, exaltando a guarda da Constituição (art. 102, CF), declarar a inconstitucionalidade de candidaturas ofensivas ao princípio da moralidade.
Nesse contexto litigioso, os políticos já precificaram que tudo de relevo acaba sendo levado – bem ou mal – ao STF; então, a demagogia corre solta, jogando-se o rojão no colo do Supremo Tribunal para que, se quiser, assuma o ônus da decisão impopular. Tal movimento é absolutamente problemático, pois acaba por transferir a um órgão técnico-judicial deliberações democráticas que deveriam ser decididas prioritariamente por razões políticas e, não, jurídicas. Aliás, sentenças judiciais não resolvem problemas políticos, podendo, inclusive, agravá-los à luz de elementos circunstâncias da democracia cambiante. De tudo, uma constatação: a hipertrofia da jurisdição constitucional é um sintoma da atrofia dos poderes políticos genuínos, representando preocupante anomalia institucional na República.
No cair da tarde, o Brasil navega sem rumo. A Constituição deixou de ser nossa bússola. O choque de poder é frontal. A legalidade afunda. O desentendimento reina. A democracia sofre. O povo agoniza. A civilização retrocede. Antes do abismo, uma eleição presidencial em outubro. Entre esperanças, o futuro se faz agora.