O Banco Central da República do Brasil que iniciou suas operações em 31 de março de 1965 era uma criação tardia e parcial, mesmo tendo em vista que, genericamente, o banco central era uma construção institucional recente, amadurecida ao longo da segunda metade do século XIX. Em 1900, eram apenas 18 dessas criaturas em operação, nenhuma na América Latina. Em 1960, dessa região só faltava o Brasil, e o total chegava a 80. Hoje são 176. Não há país sem moeda, bandeira, hino e banco central.
O BC poderia ter nascido no século XIX, a partir do Banco do Brasil, mas, curiosamente, aí estava o maior enrosco, especialmente depois de 1906, quando o BB renasceu como empresa de economia mista e quis se tornar BC sem deixar de ser o BB. Este impasse foi duradouro e paralisante até 1944, quando a Conferência de Bretton Woods determinou a criação de um novo Fundo Monetário Internacional (FMI) que teria como quotistas os bancos centrais dos países membros. O Brasil ficou obrigado a criar o seu, mas driblou a determinação através da criação da Sumoc (Superintendência da Moeda e do Crédito) “com o objetivo imediato de exercer o controle do mercado monetário e preparar a criação do banco central” (Art. 1, DL 7.293/45).
[su_quote]Não há país sem moeda, bandeira, hino e banco central[/su_quote]
A Sumoc era uma maneira engenhosa de conciliar os interesses do BB, do Tesouro e dos apóstolos da disciplina monetária em torno da paralisia, posto que ninguém queria avançar e havia “ganhos conceituais” para todos. Os receios dos apóstolos do BC ficariam claros em 1947, quando o ministro da Fazenda Pedro Luiz Correa e Castro enviou um anteprojeto ao Congresso tratando de reforma bancária descrito na ocasião como um “projeto ônibus” pois incluía, junto com o BC, todos os delírios que estavam a circular pelo parlamento. O projeto propunha a criação de 5 bancos “semiestatais” (hipotecário, rural, industrial, investimentos e comércio), além de uma reorganização do BB, formando um “sistema” no seio do qual o BC parecia destinado a servir como o grande provedor de fundos para o conjunto. Nem Eugenio Gudin quis fazer um BC desse jeito.
No começo dos anos 1960, quando os ânimos políticos se aqueceram, os impasses estavam todos no mesmo lugar. A novidade foi que os projetos mais radicais pela esquerda assumiram a ideia de o BB ganhar o “status” de BC e se tornar o centro de um mecanismo de “crédito social”, mais ou menos como concebido no projeto Correa e Castro. Surpreendentemente, no entanto, em meio à agitação em torno das reformas de base, o presidente João Goulart discrepou e enviou ao Congresso em 1963 um projeto moderado refletindo a evolução parlamentar do projeto Correa e Castro até o momento. Um substitutivo, bastante piorado, do deputado José Maria Alkmin, estava pronto para o plenário, onde provavelmente encontraria muita dificuldade, quando veio o Golpe. A vida parlamentar não foi interrompida, a despeito do novo clima e de algumas cassações. Os protagonistas dos impasses continuavam do mesmo tamanho, e em plenário prevaleceu uma emenda substitutiva do deputado Pedro Aleixo que remeteu o texto de Alkmin de volta para a comissão de onde viera. Um novo substitutivo do deputado Ulysses Guimarães, ninguém menos, foi produzido, e depois de muitas emendas, acordos e concessões nas duas casas, foi sancionado com vetos em 31 de dezembro de 1964 (Lei 4.595).
A longa batalha não havia produzido um BC alinhado com as melhores práticas internacionais, ao contrário. A autoridade monetária era um conselho (CMN — Conselho Monetário Nacional) com objetivos entre o vago e o contraditório, e com uma composição nada indicativa do interesse na saúde da moeda. O BC nasceu subalterno ao CMN, com obrigações de fomento rural, uma “conta movimento” que o subordinava ao BB, e antes de completar 3 anos de vida, foi humilhado pelo general presidente Costa e Silva (e seu ministro da Fazenda Delfim Neto) que “renunciaram” os dirigentes com mandato. A independência da instituição fora revogada sem piedade pelos golpistas e, pior, o sistema foi reorganizado de forma a que o BC se tornasse a casa de máquinas de uma extensa e ambiciosa agenda de desenvolvimento centralizada no CMN. Curiosamente, era muito semelhante aos projetos de reforma bancária pela esquerda, porém com prioridades diversas e com as atividades dos vários bancos públicos e privados amarrada a um “orçamento monetário” que usurpava prerrogativas do Congresso.
Com a democracia, entretanto, em vez de um retorno ao desenho de BC independente que a Revolução destruiu, consolidou-se uma tendência ainda mais perversa de transformar o CMN numa espécie de câmara setorial da moeda, com ampla “representação da sociedade”, inclusive dos trabalhadores, e todos os conflitos de interesse possíveis. A Nova República começa com a inflação na casa de 200% anuais e em dezembro de 1989, durante o segundo turno das primeiras eleições presidenciais em quase três décadas, o país ultrapassa a barreira técnica da hiperinflação, 50% mensais.
[su_quote]Aos 50 anos, curiosamente, a organização institucional do sistema monetário ainda precisa amadurecer[/su_quote]
O Plano Real encontrou o CMN com 21 membros e o BC desmoralizado depois de cinco choques heterodoxos fracassados. Ao reduzir o CMN a três membros foi possível recapturar a governança da moeda, mas o país tinha 45 bancos estaduais e cinco federais todos funcionando como se fossem BCs, e todos (ou quase) quebrados. Não era possível afirmar que o Banco Central do Brasil estava constituído por inteiro antes de ordenar esta bagunça, cujas origens remontavam ao “sistema” do projeto Correa e Castro. O saneamento durou alguns anos e por volta de 1997 estava basicamente terminado, ou seja, o BC assumiu para valer o controle da moeda no Brasil quase no fim do século XX.
Aos 50 anos, curiosamente, a organização institucional do sistema monetário estabelecida pela Lei 4.595/65 ainda precisa amadurecer. O poder do presidente da República sobre o BC e o CMN é total e irrestrito, mais até que no tempo dos generais. O presidente é dono da política monetária, o sistema de metas é definido em um decreto e o Comitê de Política Monetária (Copom) não passa de uma sessão temática da reunião da diretoria do BC. Ainda temos um sistema geiseliano, onde um simples decreto viraria o sistema de pernas para o ar.
Toda a força do BC, tal como funciona hoje, deriva de uma ideia cuja hora chegou, a da estabilidade da moeda como bem público a ser provido e cuidado pelo BC. Não é pouca coisa, e nenhum dos últimos presidentes da República teve a coragem nem de desafiar esse consenso, tampouco de colocá-lo em lei. Reforçar o desenho institucional do BC, a começar pelo mandato a seus dirigentes, entre outras ideias, continua importante além de oportuno para uma presidente com déficit de credibilidade.
Fonte: O Globo, 29/3/2015
No Comment! Be the first one.