Plebiscito e referendo são consultas formuladas ao povo para que este delibere, de forma direta, sobre matéria de natureza constitucional, legislativa ou administrativa. Segundo a lei que trata do assunto, o plebiscito é convocado previamente à medida que se pretenda adotar, cabendo aos cidadãos, por meio do voto, aprovar ou rejeitar a proposta que lhes tenha sido submetida. Já o referendo é uma consulta quanto a matéria que já tenha sido decidida pelos órgãos competentes do poder público, cabendo ao povo ratificar ou não tal decisão.
Está-se a ver que a distinção fundamental entre os dois mecanismos de participação popular na democracia brasileira consiste no momento da consulta — se prévio ou posterior à medida a ser implementada. A diferença, todavia, não se resume a isso. Plebiscito e referendo têm vocações distintas, sendo aplicáveis consoante a natureza da consulta que se faça ao eleitorado.
A consulta plebiscitária pressupõe a viabilidade da formulação de perguntas objetivas sobre matérias específicas, que permitam uma efetiva deliberação popular. Você é a favor ou contra a descriminalização do uso da maconha? Qual forma de governo você prefere: república ou monarquia? Qual sistema de governo você deseja: presidencialismo ou parlamentarismo? O resultado do plebiscito encerra, assim, uma decisão completa do povo sobre questões pontuais.
O referendo destina-se, modo geral, a matérias mais complexas, que exigem tratamento detalhado e sistemático anterior pelos representantes do povo. Um bom exemplo colhido da realidade brasileira foi o Estatuto do Desarmamento, cuja submissão à consulta popular pressupôs a ampla discussão e a prévia aprovação pelo Congresso Nacional. Com efeito, não seria possível fazer perguntas prévias sobre as tantas e tão variadas questões envolvidas no debate acerca da produção, comercialização e porte de armas de fogo.
No que se refere à reforma política, há razões consistentes que inviabilizam o uso do plebiscito. Primeiro, a extensa lista das questões a serem decididas, a multiplicidade das opções disponíveis e suas possíveis combinações — o que certamente dificultaria a capacidade cognitiva dos eleitores e a obtenção de uma efetiva deliberação. Segundo, o risco de uma consulta excessivamente genérica, que possa resultar numa espécie de cheque em branco assinado pelo povo. De fato, um plebiscito que aprove diretivas muito abstratas poderá facilmente tornar-se mero argumento retórico para qualquer projeto de reforma política que se queira implementar.
No bojo dos argumentos em favor do plebiscito tem-se falado, ainda, na convocação de uma constituinte específica. O sistema jurídico-constitucional brasileiro oferece mecanismos suficientemente flexíveis para que, dentro das regras do jogo, sejam aprimoradas as nossas instituições políticas. Não há necessidade de convocação de uma assembleia constituinte, tampouco parece haver legitimidade para uma ruptura dos marcos constitucionais do Estado democrático de direito.
De outro lado, exsurgiu das urnas um consenso sobreposto às divergências do processo eleitoral, no sentido da urgência de reformas políticas no país. Mas tal energia popular ainda se apresenta em estado amorfo, carecendo de representação nas instâncias institucionais do poder. Daí a importância de que os mandatários do povo, ungidos pelo voto, assumam as suas responsabilidades e liderem o processo de construção do conteúdo das reformas. Ao longo do processo, as diversas posições e opções ficarão claras e poderão ser amadurecidas, em um diálogo aberto com a sociedade.
Ao final, caso haja necessidade de um lastro maior de legitimidade a viabilizar a sua implementação, poderá o Congresso Nacional optar pela submissão das reformas ao crivo popular mediante convocação de um referendo. Aí, então, caberá ao povo julgar o trabalho entregue por seus representantes, e não entregar-lhes previamente um cheque assinado e em branco.
Fonte: O Globo, 30/10/2014.
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