Em maio de 1981 estava, na França, grudado na televisão, aguardando o resultado da eleição presidencial daquele país, disputada por François Mitterrand e Valéry Giscard d’Estaing. Já naquele então, diga-se de passagem, a boca de urna não errou, tendo como resultado a eleição do socialista.
Uma vez confirmado o resultado, o novo presidente dirigiu-se ao seu povo com as seguintes palavras: “eu não sou o presidente dos socialistas, eu sou o presidente dos franceses!”. O tom e a pausa utilizados na dicção deste simples frase muito diziam sobre a necessidade de um país unido. A sua concisão teve o efeito de uma longa repercussão.
Em outubro de 2014 aguardava, agora, o resultado de nossa eleição presidencial, ansioso diante da iminente divulgação dos dados definitivos do Supremo Tribunal Eleitoral. Uma vez confirmada a vitória da Presidente Dilma Rousseff veio-me à memória as palavras do presidente francês. Perguntei-me se nossa presidente teria essa mesma postura, em um chamamento nacional de união e de conciliação.
Quando a presidente começou o seu discurso, com a longa lista de agradecimentos, fui tomado de um sentimento inicial de frustação, como se o Brasil tivesse sido esquecido. Qual não foi, então, a minha surpresa quando as palavras “união” e “diálogo” foram empregadas. Surgiu um espírito verdadeiramente nacional, avesso aos radicalismos e propenso à conciliação e à negociação. Dilma Rousseff colocou-se acima de seu partido e da coalizão que a elegeu, adotando a postura de uma presidente de todos os brasileiros.
É bem verdade que os nomes de seus adversários não foram pronunciados, o que é certamente uma falta, pois contendores não são inimigos a serem abatidos, mas concorrentes na luta pelo Poder. Acima de todos está, certamente, a República. Dias depois essa falta foi contornada com um chamamento a Aécio Neves e Marina Silva, ampliando a união aos seus adversários da véspera.
Contudo, a outra parte de seu discurso caracterizou-se por uma brecha aberta em sua proposta de união e de diálogo. É como se a armação do edifício político estivesse trincada. Surgiu, inesperadamente, a proposta de uma reforma política via plebiscito e consulta popular, como se essa tivesse sido colocada como prioridade na campanha política. Em nenhum momento, nem de parte de Dilma Rousseff, nem de Aécio Neves, a reforma política, muito menos um plebiscito mereceram qualquer destaque. Tais ideias estiveram simplesmente ausentes.
Assinale-se ainda que tal proposta, ao contrário do veiculado, não apareceu nas Jornadas de Junho do ano passado. Não houve um único cartaz ou faixa a respeito. O mote maior foi o da mobilidade urbana, com repercussões correlatas no que diz respeito à falta de qualidade da educação e da saúde. O plebiscito e, mesmo, a ideia de uma Assembleia Constituinte Exclusiva de Reforma Política surgiram, posteriormente, de parte do governo, não tendo nada a ver com as manifestações de rua. Essas foram não partidárias e avessas a radicalismos políticos.
Logo, parece ser algo completamente extemporâneo a reintrodução no discurso da vitória de uma temática não popular e, ainda, suscetível de criar clivagens ideológicas que o próprio discurso presidencial procurou evitar. Note-se que o plebiscito é convocado para que os cidadãos participem da elaboração de uma lei. O referendo, ao contrário, é convocado para referendar ou não uma lei já previamente discutida e aprovada no âmbito do Legislativo.
No caso do plebiscito, ele pressupõe perguntas simples, poucas ou mesmo uma, sobre um tópico determinado. Perguntas de fácil compreensão. Por exemplo: “você é a favor do aborto?; ou “você é a favor da pena de morte?”.
Imagine-se agora um plebiscito sobre a reforma política. Exemplo: “você é a favor do voto distrital ou do voto distrital misto ou do voto proporcional?”. A população brasileira teria condições de entender essas diferenças? Nada de fácil compreensão. O mesmo se aplicaria a perguntas sobre “lista fechada, lista fechada com escolha e lista aberta”, pergunta que deveria ainda ser acoplada com o “financiamento público, com o financiamento empresarial e com o financiamento privado”. O grau de complexidade seria infindável, tornando inexequível tecnicamente um plebiscito.
A situação poderia ainda ganhar contornos de radicalismo político com a proposta de convocação de uma Assembleia Constituinte Exclusiva para a Reforma Política, que poderia colocar o país no rumo de nossos vizinhos bolivarianos, que se esmeram em destruir os seus respectivos países. Chamar isso de “progresso” corresponde a uma miopia ideológica. Ademais, a Câmara dos Deputados, ao sustar o decreto presidencial que cria os ditos “conselhos populares”, já está dando mostras de que o seu caminho é o da consolidação da democracia representativa. Arremedos de democracia direta não serão aceitos.
O discurso da união e do diálogo tampouco se coaduna com manifestações de militantes, na festa da vitória, e mesmo de representantes partidários, contra a Rede Globo e a revista “Veja”. A liberdade de imprensa é um valor maior, princípio da República, não podendo ser vítima de disputas eleitorais. Ela se situa acima das lutas políticas e partidárias. O arroubo de uma manifestação não pode se tornar uma política de governo.
Há algo de muito curioso aqui. Os que advogam pelo controle social da mídia e a regulação direta ou indireta dos conteúdos jornalísticos se dizem frequentemente perseguidos. Se são “perseguidos”, torna-se algo de difícil comprovação, pois o PT está fechando 12 anos de governo, indo para 16. Seriam paranoicos bem sucedidos!
Por último, assinale-se que a presidente Dilma, em seu primeiro mandato, caracterizou-se por uma defensora irrestrita da liberdade de imprensa, não tendo levado a cabo nenhum processo de regulação da mídia que pudesse atentar contra os valores da democracia. Que assim continue em seu segundo mandato, coerente com sua prática e com seu discurso de união e de diálogo.
Fonte: O Globo, 3/11/2014
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