A nobreza obriga. Ela demanda do nobre, do dono, do empresário e, acima de tudo, dos “políticos” — dos que ocupam cargos públicos temporários e abarrotados de poder —, uma boa porção de deveres. De dívidas e de responsabilidades para com os subordinados, com os governados e com a sociedade como um todo. O capitão é o último a abandonar o navio; os ratos são os primeiros.
Em algumas sociedades tribais, os curadores desleixados e egoístas são punidos com a morte. O caso mais contundente de noblesse oblige encontra-se entre os shiluk do antigo Sudão, estudado magistralmente pelo antropólogo inglês Evans-Pritchard. Lá, o rei não podia realizar atos impuros e corruptos. Se o fizesse, todo o reino sofria e ele — como encarnação de Nyikang, o espírito onipresente legitimador e símbolo da própria sociedade e das suas normas morais — seria assassinado. Tal como na Grécia e na Roma antigas, rex est mixta persona cum sacerdote (o rei é uma figura que reúne nobreza e sacerdócio). A despeito de todas as utopias revolucionárias, as nobrezas têm um lado sacerdotal de origem e, se esse lado é esquecido ou abusado, com ele se vão a ética e a honra devida ao seu caráter. Mas o Brasil de hoje passa ao largo de tudo isso. De fato, nestes tempos de mistificação geral e oficial, a palavra de ordem é justamente esquecer essa chatice obviamente reacionária do noblesse oblige.
Essa ética da obrigação (ou da generosidade) incomoda porque revela o poder visto do ângulo do reprimido dos subordinados, bem como a sua dimensão interdependente. Ela lembra que os empregados daqueles que por nascimento, eleição, talento ou sucesso, tornaram-se poderosos, ricos e famosos devem contar com um mínimo de proteção moral. Podem não ter cofres, capacidade para decretar, interesses, compromissos pessoais e partidários, mas, se deixarem de obedecer, de confiar ou de respeitar seus patrões — se suprimirem a relação com eles —, o sistema (o todo) vai abaixo, como estamos vendo no aumento da chamada violência neste nosso Brasil sem nenhuma noblesse oblige.
O nobre, como o senhor, pode ter a espada, o chicote o mercado e até mesmo os juízes e a lei, mas o subordinado tem aquilo que alguns antropólogos antigos — que escreveram quando os animais ainda não discursavam — chamavam de “poder dos fracos”. O poder de abençoar (ou amaldiçoar) e de serem honestos e amorosos com os nossos filhinhos e os nossos bens. A rebelião nasce da maldição e da vingança.
À honestidade dos explorados corresponde muito de perto a consideração dos seus patrões. Um universo reduzido ao seu lado econômico e lido apenas por números esconde essas interdependências morais, reveladoras dos encaixes dos papéis sociais. Ninguém pode cortar o seu próprio cabelo ou enterrar-se a si mesmo ou viver sem o amor de um outro. A bênção do velho pai ou o diploma que o simboliza são indispensáveis para o exercício de certas profissões.
A nobreza não existe sem o plebeu, nem o rico sem o pobre, tal como o governante não governa sem o respeito dos cidadãos. Quando se fala em “opinião pública”, fala-se do poder das relações que, queiramos ou não, nos interligam com aqueles que são nossos superiores e, sobretudo, com os que dependem de nossas vidas e condutas.
A divisão entre “nós” e “eles” preferida e recorrente nas falas truncadas da nossa presidente esconde ou reprime um dado sociológico básico: o nosso lado não existe sem o lado deles que nos legitima. Só na obra de um autor excepcional, Guimarães Rosa, um sujeito criou uma “terceira margem do rio”, essa reconciliação milagrosa e contra a corrente que, na nossa vida pública, é um direito dos políticos abençoados pelo oposto do noblesse oblige. Pois, para esses traidores da democracia e ladrões da riqueza coletiva, a nobreza desobriga! Daí o surto de desânimo, de desconfiança e de apatia dos que silenciam por não terem poder ou dinheiro, mas demandam e têm o direito à honestidade, ao pedido de desculpa e ao reconhecimento dos erros dos poderosos. Ninguém pode ou deve esconder-se por detrás da Bandeira do Brasil. Tentar usar desse expediente é mais do que desfaçatez: é covardia e traição para com o todo que nos une.
Não haveria governo sem um povo, sem eleitores; ou sem um país que nos une. Essa é a realidade permanente. A dualidade do contra e a favor é transitória, mas sem o todo — o palco, a arena e o publico pagante — a disputa política não existiria. Noblesse, afinal, oblige!
Fonte: O Globo, 26/11/2014.
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