Jornalistas processados por injúria, calúnia ou difamação costumam se defender apelando para a liberdade de imprensa. Alegam que não ofenderam ninguém, apenas exerceram o sagrado direito de crítica. E que nem deveriam ser processados, pois o processo em si já seria uma violação do direito de livre expressão.
É verdade que há litigantes de má-fé e que vão aos tribunais não para obter justiça, e sim para atazanar a vida do jornalista e intimidar a direção do veículo. Abrem seguidos processos, em diversas cidades e instâncias, aproveitando-se da morosidade da Justiça para, de fato, criar dificuldades pessoais e prejuízos financeiros para o jornalista e o órgão no qual trabalha.
[su_quote]Não há como garantir a plena liberdade das pessoas sem o aparato da democracia ocidental[/su_quote]
Mas não se pode concluir daí que todo processo contra jornalistas e/ou veículos de imprensa seja um atentado à liberdade de expressão. Há uma diferença entre crítica e ofensa. Entre, digamos, atacar uma política e difamar uma pessoa.
E quem resolve isso? A Justiça.
Quando um jornalista é processado por algo que veiculou, ele já exerceu a liberdade de imprensa. Já fez e publicou a reportagem ou a opinião, não tendo sofrido qualquer censura prévia. Agora, se uma pessoa se sente ofendida, tem o direito de reclamar nos tribunais. Trata-se de um direito individual do mesmo nível do direito à livre expressão.
De onde se conclui que a assim chamada democracia ocidental é uma verdadeira obra-prima, uma notável criação. Vira e mexe aparecem restrições ao sistema: que não funciona para todos, que não serve para determinadas culturas ou para determinados momentos na vida de um povo.
Diz-se, por exemplo, que é preciso uma ditadura ou ao menos um regime autoritário para um país pobre crescer rapidamente e acumular riqueza. Seria algo como formar o bolo na ditadura para distribuí-lo numa futura democracia. Era o que se dizia no Brasil, por exemplo. Nunca acontece: é preciso derrubar a ditadura para crescer de forma saudável.
Mas atenção: democracia não é garantia de crescimento e eficiência econômica. Garante os direitos, a liberdade individual, mas os cidadãos podem tomar más decisões no exercício dessa democracia.
Mas não há como garantir o fundamento — a plena liberdade das pessoas — sem o aparato da democracia ocidental.
Na China, então, eles nem se preocupam em argumentar que a ditadura seria uma necessidade transitória. Dizem logo que democracia à maneira ocidental é coisa que não serve para eles. A prova? O sucesso econômico do país.
Atenção, de novo: um regime autoritário pode perfeitamente conseguir momentos de expansão do Produto Interno Bruto. Mas será sempre um crescimento enviesado, privilegiando setores e grupos, especialmente o pessoal do poder e do partido no poder. Exemplo? A própria China, em que chefões do Partido Comunista acumulam fortunas de bilhões de dólares. Ou os burocratas da velha União Soviética, que se apropriavam da riqueza socialista e que, na suposta democratização e introdução do capitalismo, ficaram ricos vendendo para eles mesmos os bons negócios.
Na verdade, nem se precisaria argumentar tanto. Basta observar: os países mais ricos, aqueles onde a população vive melhor, onde a renda é maior e mais bem distribuída, são democracias e capitalistas. Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha — ali onde as bases da democracia ocidental foram construídas ao longo da História. É isso, nem capitalismo nem democracia são, digamos, naturais. São construções históricas, as melhores que se pode conseguir.
Inclusive com a separação dos poderes e a existência de tribunais independentes para dirimir as disputas entre pessoas livres. A liberdade de imprensa é parte desse processo. Mas, assim como a minha liberdade não me dá o direito de sair por aí matando os outros que me incomodam, também o jornalista não tem o direito de ofender os outros.
Pode escrever, pode publicar, sem qualquer censura prévia. Se alguém se sente ofendido, que vá aos tribunais — e estes decidirão onde está a crítica, onde a ofensa.
É simples assim. Fácil de entender e de fazer.
O que não faz sentido algum é a pessoa achar que, em nome de sua religião, qualquer religião ou fé, pode fazer justiça contra os infiéis. “Charlie Hebdo” foi assassinado. Ato covarde, brutal, horror.
As charges eram ofensivas? Só o juiz pode decidir isso e impor a sentença, mas sempre defendendo a liberdade de opinião. Pode, por exemplo, impor uma pena de prisão ao ofensor, mas nunca impor a censura prévia ou fechar o veículo.
O resto é conversa para proteger interesses e justificar brutalidades contra as pessoas.
Por que uma mulher não poderia andar com o rosto descoberto, não poderia votar ou dirigir um carro? Porque a cultura “deles” é assim ou porque elas fazem o papel de escravas de seus homens?
Fonte: O Globo, 22/01/2015.
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