Quando se aventurou em uma de suas últimas obras sobre relações entre o que chamou Kultur (civilização, na tradução brasileira) e o indivíduo, Freud enveredou em uma trilha repleta de armadilhas. Em “O Mal Estar na Civilização”, identificou uma tensão entre pulsões individuais (libidinais) e os constrangimentos impostos pelo contexto social. Essa tensão é para Freud a fonte permanente de frustração e descontentamento. Fazer a ponte entre o nível individual da análise e o nível macro é tarefa complexa. A imaginação política brasileira tem se debruçado sobre algo similar: as razões do mal estar na democracia brasileira. Aqui também há várias armadilhas para o analista porque são diversas as causas do descontentamento. Algumas decorrem da conjuntura – o pífio desempenho da economia, por exemplo. Outras tem natureza claramente institucional.
O suspeito usual pelo mal estar da democracia brasileira é o presidencialismo de coalizão. Segundo os críticos, embora garanta governabilidade esse modelo está ancorado em um jogo corrupto envolvendo a formação de alianças que garantem a aprovação da aliança presidencial. Esse diagnóstico confunde o modelo de governos de coalizão com traços singulares de sua evolução no país. O primeiro aspecto a destacar como fonte do mal estar é o tamanho das coalizões.
Durante o Governo Collor o número de partidos na coalizão de governo passa de dois para quatro, oscila em torno de quatro no governo Itamar Franco. Nos dois mandatos de FHC, formaram-se três coalizões de governo com quatro, cinco e três partidos (redução decorrente da saída do PFL do governo em 2001), respectivamente. Nos dois governos Lula, o tamanho da coalizão se eleva significativamente, oscilando entre oito, seis e oito. Finalmente, sob Dilma, a coalizão atinge uma dimensão inédita no plano internacional: dez partidos.
Coalizões oportunistas geram cinismo cívico
O número efetivo de partidos políticos no país (NEPP) – uma medida que calcula a dispersão do voto entre os partidos e não apenas o seu número – se elevou de 7.14, em 1998, para 10.36, em 2010. A interpretação do STF, em julgamento sobre o recém criado PDS, em 2011, e que permitiu a migração de um partido existente para um partido antigo levou à criação de mais duas legendas PROS (2013) e Solidariedade (2013). Dessa forma, a fragmentação partidária, mensurada pelo NEPP (que atingiu o seu valor mais elevado na base de dados de abrangência mundial do IDEA/Gallaher -Trinity College), se intensifica.
O tamanho da coalizão de governo atualmente no país é um dos mais elevados do mundo, e possivelmente da história, só superado por países cujas regras permitem partidos provinciais (Índia, Argentina). A coalizão que governou a Índia de 1998 a 2004, a National Democratic Alliance – a mais ampla registrada na literatura -, consistia de 24 partidos, dos quais 20 eram partidos estaduais (e 17 existiam apenas em um estado). Mas no Brasil, dez partidos nacionais integram o governo. E têm caráter nacional, já que desde a Constituição de 1946 há um princípio constitucional que proíbe o registro de agremiações estaduais.
O sistema de representação proporcional adotado no país há sete décadas leva necessariamente à fragmentação partidária. Daí decorrem muitas consequências positivas como ganhos de representatividade e maior capacidade efetiva de controle do poder executivo e menor potencial de abuso de poder presidencial. No entanto, os ganhos marginais decorrente da formação de coalizões é decrescente a partir de um certo limiar e, no limite, tornam-se negativos. Isto ocorre por duas razões. Em primeiro lugar, pelo aumento dos custos de transação que podem minar os ganhos de troca no sistema político.
[su_quote]A heterogeneidade das coalizões é causa fundamental do descontentamento porque exacerba o cinismo cívico dos cidadãos[/su_quote]
Em segundo, pelo aumento da heterogeneidade ideológica da coalizão de governo. A estimativa da heterogeneidade ideológica é tarefa tecnicamente complexa. Felizmente, cientistas políticos brasileiros utilizando técnicas sofisticadas (W-Nominate) já mediram a distância ideológica entre partidos. Essa medida permite que observemos a evolução da heterogeneidade média (HM) das coalizões de governo desde 1990. No Governo Collor, o escore da HM oscila entre 0,03 e 0,39. Durante os governos FHC o HM ascende para 0.77 no primeiro mandato, declinando para 0,3 em 2002. No primeiro governo Lula, ela ascende a 1.32, em 2002, quase duplicando esse escore para 2,42 no final do primeiro governo Lula. Finalmente, ela atinge 4,94 no final do governo Lula. Embora o escore não esteja disponível para o governo Dilma, a heterogeneidade ideológica média continua sua vertiginosa ascensão desde 1994. Como no peronismo, as coalizões atravessam o continuum ideológico: da extrema direita à extrema esquerda.
A crescente heterogeneidade ideológica das coalizões de governo tem várias causas mas ela é também fundamentalmente uma variável de escolha dos governantes, em particular do presidente que é o formateur da coalizão.
A heterogeneidade das coalizões é causa fundamental do descontentamento porque exacerba o cinismo cívico dos cidadãos. Ela fortalece a convicção que a política é jogo sujo marcado por interesses corruptos. Esse sentimento viceja quando o governo não tem agenda clara e o estilo de governo se abastarda no atendimento a demandas setoriais. Assim, se a fonte da insatisfação são setores empresariais a resposta é redução de tarifas aqui, desoneração de impostos acolá. Se não há agenda programática clara e o pragmatismo político não encontra limites, a inteligibilidade da política fenece. A representação política inverte sua lógica e converte-se em responsividade oportunista.
O cidadão têm demandas – os freudianos diriam que tem pulsões libidinais – e a estrutura institucional importa. Ela é um dos fatores que produzem descontentamento. No entanto, mais importante que os constrangimentos institucionais são as escolhas que governantes distintos podem fazer no mesmo marco institucional.
Fonte: Valor Econômico, 8/8/2014
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