A tipificação do feminicídio aprovada nesta terça-feira deve servir como um recado à sociedade sobre a discriminação sofrida pela mulher e suas consequências. Para especialistas, a própria necessidade dessa alteração evidencia como a Justiça não dá o tratamento adequado aos crimes de gênero no Brasil. Entretanto, eles defendem que a determinação não pode ser encarada como algo capaz de transformar a realidade isoladamente.
O projeto altera o Código Penal para tipificar como homicídio qualificado o feminicídio, definido como assassinato de mulher em razão de sua condição de sexo feminino. O texto já passou pelo Senado e irá à sanção presidencial.
Elaborado pela Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da Violência contra a Mulher, a proposta estabelece que existem razões de gênero quando o crime envolver violência doméstica e familiar, ou menosprezo e discriminação contra a condição de mulher. A alteração também transforma o feminicídio em crime hediondo.
A pena prevista para homicídio qualificado é de reclusão de 12 a 30 anos. O projeto prevê ainda o aumento da pena em um terço se o crime acontecer durante a gestação ou nos três meses posteriores ao parto; se for contra adolescente menor de 14 anos ou adulto acima de 60 anos ou ainda pessoa com deficiência. Também se o assassinato for cometido na presença de familiares da vítima.
Para a consultora jurídica do Instituto Patrícia Galvão, Fernanda Matsuda, uma mudança dessa magnitude manda uma mensagem à sociedade:
– Estamos reconhecendo um problema ao qual a Justiça Criminal não tem dado a atenção merecida – diz, comentando que o texto pode ajudar a mudar a percepção da sociedade sobre o problema. – Desde a Lei Maria da Penha, de 2006, a sociedade vem entendendo o que é a violência de gênero, e porque as mulheres precisam desse cuidado especial. Essa tipificação não pode vir desconectada desse movimento.
Na avaliação de Fernanda, o feminicídio é um homicídio que não se confunde com todos os outros, porque possui um histórico de violência, além da dificuldade de acesso à Justiça por boa parte das vítimas. Por isso, o sistema judicial tem que atuar de maneira diferenciada.
– Existem desigualdades que são específicas. Não é que o assassinato de homens não seja um problema grave e esteja livre da impunidade. Mas o assassinato de mulheres tem crescido mais, em comparação com os homens. As mulheres morrem dentro de suas casas em contextos, muitas vezes, evitáveis, fruto dessa relação de violência e desigualdade.
Para ela, na forma como se encontra atualmente, a lei não tem dado resultados no combate a essa realidade, já que os sistemas de Justiça não estão lidando adequadamente com esse fenômeno.
– Nosso sistema é extremamente machista, refletindo a própria sociedade. Quando propomos uma mudança assim, apostamos no potencial transformador do nosso sistema de justiça, dando uma resposta a grupos tradicionalmente excluídos.
Uma vítima a cada uma hora e meia
A representante do escritório da ONU Mulheres no Brasil, Nadine Gasman, recorre aos números para mostrar o quanto a mudança é urgente. Segundo ela, 4.500 mulheres são assassinadas por ano no Brasil, o que significa aproximadamente uma vítima a cada uma hora e meia.
– São dados muito preocupantes e sabemos que a maioria dos assassinatos são cometidos por pessoas que elas conhecem. Esses crimes precisam ser investigados sob a perspectiva de gênero, levando em conta as características previstas na nova lei – avalia.
O Brasil é o 16º país da América Latina a tipificar o crime, juntamente com nações como Argentina, Bolívia, Chile e México. O primeiro foi Costa Rica.
– O grande desafio é garantir que esses crimes recebam boas investigações, que deixem claras as questões de gênero por trás deles. A tipificação traz uma oportunidade de trabalhar com nossos operadores de Justiça, ministério público e representantes da sociedade essas questões.
Para o professor de direito penal da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, André Mendes, a tipificação será extremamente importante para o levantamento de estatísticas relacionadas ao universo contemplado pela tipificação.
– Especificar um crime com um tipo penal permite um levantamento de dados com relação a ele. Quando isso acontece, torna-se possível acompanhar a quantidade de ocorrências, o que auxilia a formulação de politicas públicas.
Mas, como ele alerta, é importante que a alteração não seja vista como uma solução capaz de resolver isoladamente a discriminação da mulher no país.
– Acho importante que exista essa proteção especial. Mas, desacompanhada de outras medidas voltadas ao combate à discriminação, ela será ineficaz – avaliou. – A lei penal sozinha não tem o poder de transformar a realidade. Pode ajudar, desde que acompanhada de outras medidas. É preciso investir numa alteração do nosso padrão sócio-cultural, com ações em escolas e empresas, por exemplo.
Ao avaliar a mudança no Código Penal, Mendes destaca também que o Brasil não está isolado. Outros países já adotam medidas semelhantes, como os Estados Unidos.
– A discriminação da mulher é um dado secular. Então, é normal que haja um tratamento específico. E o Brasil é signatário da Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher – destacou.
Fonte: O Globo
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