O Brasil desperdiçou os anos favoráveis de preços valorizados das exportações ao ampliar os gastos públicos, relegar as reformas e não investir o necessário para fortalecer o potencial de crescimento. A análise parte do economista venezuelano Ricardo Hausmann, diretor do centro para o desenvolvimento internacional da Kennedy School of Government, da Universidade Harvard.
Para o especialista, que é um dos professores do curso de mestrado da instituição brasileira Centro de Liderança Pública, a iniciativa baseada na substituição de importações e na exigência de conteúdo nacional pouco contribuiu para incentivar a produtividade das empresas brasileiras.
“O protecionismo impede o país de tirar proveito dos benefícios oferecidos pela globalização”, diz. “O setor privado deve ser focado no mercado externo. Do contrário, as empresas serão preguiçosas.” Hausmann recebeu VEJA em seu escritório, em Harvard.
O Brasil buscou reduzir as desigualdades e incentivar o crescimento por meio do aumento dos gastos públicos, com a criação de programas sociais e a concessão de subsídios. Os resultados foram animadores em alguns momentos, mas agora a economia estagnou. Como avalia essa estratégia?
O Brasil passou por uma transição complicada nos anos 80, com o fim da ditadura militar, e dedicou esforços à construção de um novo sistema político. A Constituição aprovada no fim daquela década levou a um aumento das despesas públicas. Uma das consequências foi a alta da inflação. Mais tarde, a hiperinflação foi controlada, mas em grande parte graças a uma redução dos investimentos públicos e ao aumento dos impostos.
[su_quote]O governo deveria ter como prioridade o acúmulo de poupança pública, os investimentos em infraestrutura, a simplificação do sistema tributário[/su_quote]
O lado positivo dessa história é que a inflação foi estabilizada, algumas reformas foram feitas, e o país avançou. Entretanto, não existe poupança pública. O governo gasta constantemente acima daquilo que arrecada. Muitos países possuem déficits fiscais, mas o investimento público deles é superior aos déficits. O governo brasileiro, ao contrário, acumula déficits não para ampliar os investimentos, mas para custear as despesas correntes. O resultado é visível na infraestrutura inadequada.
O Brasil obteve alguns anos de crescimento acelerado e chegou a ser apontado como um dos países mais promissores. Era uma miragem?
Tudo chegou ao fim em 2010, quando, às vésperas da eleição, o governo se lançou em uma política de gastança excessiva. O país cresceu mais de 7%, e as pessoas começaram a imaginar que aquele seria o início de uma fase de crescimento chinês. Era insustentável, e, como eu disse na ocasião, cedo ou tarde haveria um colapso.
A taxa de crescimento tem sido frustrante, apesar das oportunidades existentes no país. O Brasil teve governos com enorme capital político, mas que não utilizaram esse capital para fazer as reformas necessárias. É inegável que o país tem pontos fortes, sobretudo no setor privado, com empresas dinâmicas e atuantes em diversas áreas. Em contrapartida, o setor público não demonstrou habilidade para executar reformas mais profundas.
Na fase de alta nas exportações dos anos 2000, contentou-se em ampliar os benefícios sociais. O governo recorreu também a políticas no estilo dos anos 60, como no caso do pré-sal. A Petrobras deveria ter sido mantida em um regime competitivo. Em vez disso, o governo incentivou o monopólio no pré-sal, exigiu conteúdo nacional e subsidiou a gasolina. Foi uma política pouco inteligente para desenvolver a indústria do petróleo.
Qual deveria ter sido o caminho seguido, então?
O governo deveria ter como prioridade o acúmulo de poupança pública, os investimentos em infraestrutura, a simplificação do sistema tributário. Essas deficiências são conhecidas faz anos, mas não parece ter havido vontade política para atacá-las. Além disso, o Brasil, dono de um grande mercado interno de consumo, sempre tentou usar essa característica como uma ferramenta de negociação. Tal instrumento, entretanto, foi utilizado de maneira errada, privilegiando políticas protecionistas e pouco saudáveis para a construção de uma economia competitiva.
O senhor afirma que existem ações do governo que contribuem para que as empresas sejam mais produtivas e outras que tornam as empresas mais lucrativas. Qual é a diferença?
Com o avanço na produtividade, todos ganham. Os salários aumentam, mais mercadorias são vendidas, as empresas ganham, o governo arrecada impostos. Se as políticas públicas, entretanto, apenas tornam as empresas mais lucrativas, e não mais produtivas, nem todos saem ganhando.
É o caso das políticas de conteúdo nacional. Com o mercado protegido, os consumidores pagam mais pelos produtos. Se há diminuição de impostos para incentivar alguma indústria em particular, o governo arrecada menos e os beneficiários dos serviços públicos podem sair perdendo. Apenas a empresa beneficiada tira proveito. O foco das políticas públicas deve ser o incentivo à produtividade, em um ambiente de competição internacional, e não o lucro, em um contexto de reserva de mercado.
O senhor, em colaboração com outros pesquisadores, criou o índice da complexidade econômica. Qual é a finalidade do indicador?
O que tentamos fazer foi medir o escopo do know-how, do conhecimento de uma economia. Medimos o que é produzido e quão difícil é produzir aqueles produtos ou serviços. Tipicamente, países pobres são capazes de produzir poucas coisas, e coisas relativamente simples. Nações ricas são capazes de fazer muitas coisas, das mais simples às mais elaboradas, que poucos países são capazes de produzir.
É uma maneira de avaliar a diversidade da capacidade produtiva de uma sociedade. Descobrimos que essa medida é altamente correlacionada com o nível de renda e com o potencial de crescimento (os dados estão disponíveis neste site).
Como o Brasil aparece nesse índice?
O Brasil parou de evoluir. Está estagnado. Tem uma economia menos complexa que a do México, por exemplo. Existem regiões avançadas, mas o potencial do país é limitado por causa do ambiente macroeconômico bastante hostil, com taxas de juros extremamente elevadas, falta de poupança, alto custo de transação.
Outro problema é a política externa. O Brasil foi capaz de transformar o Mercosul em uma piada de mau gosto. A União Europeia possibilitou a criação de um sistema produtivo e de comércio dinâmico, integrado. Os objetivos do Mercosul sempre penderam para o protecionismo. As fábricas de carros, por exemplo, são desconectadas do mercado mundial. Assim, o Brasil exporta carros ineficientes para a Argentina porque não consegue competir com o México. Existem obstáculos para que o país se transforme em uma economia mais complexa.
A falta de mão de obra qualificada é um obstáculo?
Sempre ouço queixas dos brasileiros em relação à educação. Houve progressos nessa área. O Brasil tem dado pouca atenção a um fator muito importante para o aumento da produtividade de um país, que é a atração de mão de obra estrangeira de qualidade. Muitos portugueses e espanhóis poderiam ter ido trabalhar no Brasil, quando não havia oportunidade em seus países por causa da crise.
Não podemos esquecer o papel crucial que a imigração teve no desenvolvimento brasileiro no século passado, mas, nos últimos anos, isso deixou de ter importância. O Brasil deveria ter regras que incentivassem a imigração, como era no passado e como é ainda hoje nos Estados Unidos.
A imigração contribuiria para a aceleração do desenvolvimento?
Com certeza. Todos os meus estudos sugerem que a tecnologia e o conhecimento se movem quando cérebros se movem. É muito mais fácil transportar cérebros que criar conhecimento. Quando se importam cérebros, e estes permanecem no país, eles contribuem para o treinamento de uma nova geração de cérebros. A política de imigração deveria ter um papel muito mais destacado no debate público brasileiro.
Alguns países conseguiram escapar da chamada armadilha da renda média. O segredo não foi o investimento em educação?
Existe um certo exagero em vender a educação como uma bala de prata para resolver os problemas do subdesenvolvimento. Acredito que é mais importante criar empresas e cadeias produtivas capazes de desenvolver uma rede integrada de conhecimento com outras empresas, universidades e institutos de pesquisa. Assim, é possível produzir inovação em uma escala significativa. Melhorar a qualidade do ensino, simplesmente, não basta.
Quando a Coreia do Sul decidiu desenvolver um novo modelo de chip, porque acreditou que aquela seria uma indústria importante no futuro, o projeto envolveu universidades, empresas, governo. A Samsung transformou-se na maior exportadora do país. Nos anos 70, o nível de desenvolvimento tecnológico dos coreanos era similar ao dos brasileiros. O Brasil, nesse período, seguiu a estratégia de proteger o mercado interno.
O setor privado deve ser focado no mercado externo. Do contrário, as empresas serão preguiçosas e não atingirão a evolução adequada. Nos países que conseguiram se desenvolver, como a Coreia do Sul e Israel, existe a cultura de que os verdadeiros ganhos são alcançados quando se conquista o mercado internacional.
A globalização, como o senhor diz, facilitou o desenvolvimento dos países e o processo de diminuir a distância que separa os mais pobres daqueles mais ricos. Ainda assim, a América Latina pouco avançou nas duas últimas décadas. Por quê?
A globalização facilitou o desenvolvimento dos países em economias mais complexas. Isso porque eles não precisam ser bons em todas as etapas de produção de uma mercadoria. Talvez você não seja bom em design e marketing, mas talvez seja competente em corte e costura. Com o tempo, poderá desenvolver as áreas de design e marketing. No passado, você teria de cuidar de todas as etapas, e, como é muito difícil aprender a fazer diversas coisas ao mesmo tempo, poucas atividades sobreviveriam sem a ajuda de barreiras protecionistas.
A economia moderna permite a globalização das cadeias produtivas. A Embraer é essencialmente uma montadora de peças e equipamentos produzidos ao redor do mundo. Fabrica apenas uma fração das partes de uma aeronave. Se houvesse uma política de conteúdo nacional, a empresa provavelmente não seria capaz de fazer um único avião voar.
Tenho visto transformações no México com o objetivo de tornar a economia mais complexa e integrada às cadeias produtivas internacionais. No Brasil, o protecionismo impede o país de tirar proveito dos benefícios de crescimento oferecidos pela globalização.
Há muito o senhor vem apontando os equívocos na política econômica da Venezuela, desde os tempos em que o país era favorecido pelo preço do petróleo nas alturas. Quais as perspectivas para a Venezuela, seu país natal?
A Venezuela é uma tragédia. É um dos experimentos econômicos e sociais mais desastrosos jamais feitos em toda a história. Nunca houve um boom no petróleo tão grande e prolongado como o recente. Ainda assim, o país começou a ter problemas quando o barril do petróleo custava mais de 100 dólares. Perdeu o controle da inflação e entrou em recessão, mesmo quando os preços do petróleo ainda eram favoráveis.
O governo destruiu a sociedade civil, as liberdades individuais, a iniciativa privada. Infelizmente, esse processo de destruição contou com a colaboração da América Latina, em particular do Brasil. O apoio brasileiro à Venezuela não foi compatível com seus compromissos com a Organização dos Estados Americanos e com os direitos humanos.
O desastre venezuelano terá repercussão em todo o continente, com impacto também no Brasil. Será um problema regional. O Itamaraty terá de repensar seu papel na gestão desse desastre. Terá de repensar os efeitos de subcontratar Marco Aurélio Garcia para cuidar da política externa.
Fonte: Veja 23/03/2015.
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