Roberto Setúbal não pode tomar dinheiro emprestado no Itaú, assim como Lázaro Brandão não pode se financiar no Bradesco. Não podem nem ter cheque especial nos bancos que presidem e do qual são acionistas. Isso é para proteger a instituição financeira, seus clientes e o sistema. Se o dono pode sacar no caixa do banco, é imenso o risco de que se abra um saco sem fundo. Já houve quebradeira pelo não cumprimento dessa regra no setor privado.
No setor público, a norma faz ainda mais sentido. O Tesouro (a União, o governo) não pode pegar dinheiro emprestado nos seus bancos — e isso para proteger a instituição, os clientes, o sistema e os contribuintes, estes os donos em última instância, embora raramente respeitados.
Além disso, o/a presidente da República não pode autorizar despesas que não estejam autorizadas no Orçamento, este aprovado pelo Congresso — um sistema muito eficiente, embora nem sempre respeitado.
Está aí a base da Responsabilidade Fiscal. E que foi claramente desrespeitada no governo de Dilma Roussef, como afirma o relatório do ministro Augusto Nardes, do Tribunal de Contas da União.
O caso mais simples: o seguro-desemprego é um programa mantido pelo governo federal, pelo Tesouro, com recursos previstos no Orçamento. A Caixa é agente, faz os pagamentos aos segurados, com dinheiro que recebe do Tesouro. Presta um serviço, para o qual, aliás, é remunerada. Portanto, se a Caixa não recebesse os recursos do Tesouro, não poderia pagar aos segurados. Não deveria, aliás. E deveria ter autonomia administrativa para fazer isso.
Aconteceu bem diferente: o Tesouro não fez os repasses e o governo mandou a Caixa continuar pagando normalmente. Ou seja, nesse e em outros casos, como no abono salarial, o governo sacou a descoberto, pegou dinheiro por conta, prometendo cobrir o rombo mais à frente. Ora, isso é um empréstimo, é a Caixa financiando o Tesouro numa espécie de cheque especial.
Só que a operação não é assim registrada. Fica como um pequeno atraso, nada demais, pessoal. Qual o problema, se sempre se fez assim?
A novidade é que, pela primeira vez, um relatório diz o óbvio ululante: trata-se de um empréstimo e é ilegal. São as pedaladas. Fazendo isso repetidas vezes, o governo Dilma gastou sem registrar o gasto. Ficou devendo para Caixa, para o BB e para o BNDES, mas a coisa toda parecia normal, que estava tudo em dia. E para quê? Para gastar mais do que o autorizado pelo Congresso no Orçamento.
São duas ilegalidades. Primeira, empréstimos que não poderiam ser tomados. Segunda, gastos além dos autorizados na lei maior, a Lei do Orçamento.
A Responsabilidade Fiscal foi uma construção levantada depois do Real. Um conjunto de leis, normas e acordos cujo objetivo foi colocar limites, controles e transparência ao gasto público. Foi um aprendizado.
[su_quote]O governo não pode se financiar no seu banco; tem que gastar menos do que arrecada; o gasto tem que ser autorizado pelo Congresso e transparente[/su_quote]
No início do governo FH, o Banco do Brasil recebeu um aporte de capital de R$ 9 bilhões, em dinheiro da época. Estava praticamente quebrado, justamente por causa das pedaladas. O governo federal abria uma linha de crédito subsidiado para um determinado setor, o BB adiantava os financiamentos e não recebia o ressarcimento do governo federal. Como hoje.
O governo fluminense e suas estatais se financiavam no Banerj e, claro, não pagavam nada. Que dívida? Por que pagar ao nosso próprio banco? O mesmo aconteceu com o Banespa. Resultado: quebraram os governos, as estatais e os bancos, atoladas em dívidas no final das contas financiadas pelo contribuinte.
Regras de ouro, portanto: o governo não pode se financiar no seu banco; tem que gastar menos do que arrecada; o gasto tem que ser autorizado pelo Congresso e transparente. A gestão Dilma desrespeitou tudo isso com manobras contábeis que procuraram esconder os fatos e iludir os contribuintes.
Muita gente registrou, apontou e denunciou as manobras. Mas o ministro Mantega e a presidente não estavam nem aí. Negaram as manobras até o fim. É impressionante. Pareciam ter absoluta confiança de que não ia dar em nada.
Daí a importância política do relatório de Augusto Nardes. É mais uma peça da crise atual, mas também é mais um sinal de como as coisas estão mudando. Não faz muito tempo, o TCU era uma aposentadoria de luxo para políticos. Hoje, o relatório ainda não foi votado, a presidente Dilma tem prazo para se defender formalmente, mas os dados levantados e apontados pelo relator já fizeram o serviço — o serviço de mostrar que o governante não pode fazer o que quer com o dinheiro dos outros.
Mas fica também um lado triste dessa história. Caramba, gente, essa irresponsabilidade já havia sido praticada, deixou estragos, foram corrigidos, com custos para o contribuinte, e… se faz tudo de novo?
Fonte: O Globo, 18/6/2015
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