Crises, se compreendidas e superadas, podem ser uma valiosa forma de amadurecimento. Para recorrer a um exemplo trivial, impressiona o contraste entre a Alemanha nazista e a de hoje, onde parece imperar a banalização do bem.
A atual crise brasileira, em suas dimensões política, econômica e social, pode ser uma fecunda inspiração para o futuro, desde que reflitamos adequadamente sobre suas causas e as opções para superá-las, sem nos prendermos a antigos e lamentáveis autoenganos.
A sociedade consegue perceber, com clareza, a corrupção, a inflação, o desemprego, os juros altos, a deterioração dos serviços públicos, mas não consegue entender os desequilíbrios fiscais que integram o atual quadro de crise.
É certo que o tema encerra sutilezas técnicas que não são facilmente compreendidas pelo público leigo. Aliás, tornou-se também obscuro até mesmo para especialistas, em virtude do arsenal de mistificações contábeis utilizadas pelo governo, das quais as mais conhecidas são as chamadas “pedaladas fiscais”, que se encontram em julgamento no TCU.
Tem mais. O orçamento público, que já era peça de ficção, converteu-se em fonte da desordem fiscal.
Ao menos em relação aos investimentos, os restos a pagar, em absoluto desacordo com seu significado, já são maiores que os valores correntes. Essa subversão conceitual é apenas um sintoma da confusão instalada nas contas públicas e evidente clamor por uma reforma orçamentária.
Ocorre que poucos se importam com a expansão dos gastos públicos, pois eles exercem um extraordinário fascínio sobre as pessoas, em contraste com a compreensível baixa popularidade dos impostos.
Os gastos são até capazes de fazer crer que gozam de autonomia existencial, independendo da carga tributária. De mais a mais, seus donatários são guardiães zelosos.
A superação de desequilíbrios fiscais requer determinação e coragem. Vejam o que ocorre na Grécia, Espanha e Portugal.
Só com ajustes conjunturais, entretanto, não teremos futuro, porque corremos o risco de nos defrontarmos com os mesmos problemas.
A reforma da previdência, por maior que seja a resistência política, é indispensável. Junto com ela, a reforma da legislação orçamentária, o aperfeiçoamento da lei de responsabilidade fiscal, a eliminação dos privilégios de carreiras de servidores públicos, a instituição de um programa nacional de eficiência na administração pública, etc.
[su_quote]Precisamos dissecar o orçamento e conhecer as opções para enfrentar o desajuste fiscal[/su_quote]
Infelizmente, ainda não se conhece, com clareza, a crise fiscal. Sobretudo, não se tem consciência de sua gravidade. Por isso, prosperam demandas de reposição salarial, persistente herança da indexação, como se vivêssemos em um mar de rosas. Os subsídios creditícios do BNDES e os privilégios tributários das aplicações financeiras permanecem intocáveis. Roma arde e vários Neros tocam lira.
Não é razoável afirmar simplesmente que não há mais gastos a cortar. Muito menos, falar de despesas obrigatórias, sem identificar as leis que geraram a obrigação. Teria o governo a necessária credibilidade para fazer afirmativas peremptórias, depois de tentar ludibriar a sociedade, com uma parafernália de expedientes contábeis? Ou seria apenas uma fagulha visível de um autoritarismo, que abomina a contestação?
Não precisamos ficar reféns de explicações infantis, insultosas à inteligência, que pretendem atribuir a crise fiscal a problemas externos. A mentira não costuma libertar ninguém.
A hora é da transparência. Precisamos dissecar o orçamento e conhecer as opções para enfrentar o desajuste fiscal. Esmiuçar, também, as causas estruturais, para que possamos prevenir problemas futuros.
Chega de achismos, previsões que postulam ser profecias, receitas infalíveis para uma vida virtuosa, saltos lógicos que extraem conclusões a partir de uma meia dúzia de tabelas, prestidigitações econométricas, discussões perfunctórias, dogmatismos caducos, esquematismos escolares.
O Brasil precisa pensar a crise. E amadurecer. Se nada for feito, já podemos antever que o maior problema fiscal será o próximo.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 1º/10/2015
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