Histórias que despertam emoções são mais difíceis de esquecer. Talvez por isso me lembre tão bem da que me contou meu irmão Geraldo, quando, jovem médico na periferia carioca, sofria com o drama dos pacientes com cirrose. Após tratar e aliviar a dor do doente, receitava-lhe o remédio adequado. Mas, sem dinheiro para o remédio, quando a dor voltava o doente outra vez recorria à cachaça para aliviar a dor. E assim ia arruinando a saúde.
Essa história me veio à mente lendo o recém-lançado “Programa Nacional de Emergência”, do Partido dos Trabalhadores. A proposta central do Programa é retomar as políticas expansionistas adotadas a partir de 2008, via forte relaxamento monetário e mais gasto e crédito públicos. Ou seja, reeditar a Nova Matriz Econômica (NME).
Ora, como as agências de rating, entre outros, mostraram, essas políticas arrebentaram a saúde da economia brasileira, levando-a a seguidos rebaixamentos do risco de crédito. São essas políticas que explicam porque o Brasil está mergulhado na maior recessão de sua história documentada, porque temos inflação de dois dígitos, porque o desemprego aumenta sem parar, e porque se teme o risco de um calote na dívida pública. Por que o Brasil haveria de retomar políticas que lhe fizeram tão mal, quando o que precisa é do oposto?
Antes de ver como o documento justifica isso, é interessante notar o que ele não diz. Por exemplo, por que um partido que governa o país há 13 anos precisa de um “Plano de Emergência”? Ou, que fim levaram os R$ 362 bilhões que ele doou às famílias ricas via bolsa empresário? Por onde andam os “campeões nacionais”? Porquê e o que fazer com as crises do setor de óleo e gás e da Petrobras? De fato, este tema só aparece obliquamente, na defesa da MP 703/2015, que basicamente perdoa os envolvidos em crimes de corrupção.
O Programa parte de um diagnóstico simples – ainda que errado: o cerne do problema é que as forças conservadoras estão tentando se aproveitar da crise para desfechar “ofensiva para impor um programa de retrocesso”, que visa eliminar direitos, empobrecer a classe trabalhadora, e desnacionalizar o parque produtivo. O que desejam é “queda real de salários, proteção do lucro financeiro, privatização de empresas estatais e aliança subordinada às principais potências capitalistas”.
O “diagnóstico” não é, portanto, uma análise dos fundamentos, mas um alerta de que os “capitalistas maus” estão tentando prejudicar os inocentes. Para o Programa, portanto, a solução para a crise econômica do país é simples: basta vontade política de fazer a coisa certa. E quem melhor para isso do que o Estado autoritário, revigorado por novas fontes de recursos e um programa ambicioso de gastos?
O Programa propõe revigorar o Estado autoritário de três formas principais:
1· Dar um forte estímulo monetário, com a redução radical da taxa de juros praticada pelo Banco Central, a expansão e barateamento do crédito público, e a redução dos compulsórios bancários.
2· Tornar a política fiscal ainda mais expansionista, com o aumento do investimento público, alta de 20% nos valores do Bolsa-Família, e a venda de parte das reservas internacionais para bancar gastos de infraestrutura e habitação.
3· Aumentar a carga tributária. Dez das 22 medidas propostas referem-se à criação ou majoração de tributos. Estão aí incluídas a criação da CPMF, IPVA sobre barcos e aviões, imposto sobre grandes fortunas etc.
A essência autoritária – só o Estado tem vontade própria e é desnecessário considerar como os agentes econômicos reagem às políticas – permeia todo documento. Por exemplo, reconhece-se que a situação fiscal vai piorar, pelo menos durante um período, com alta do déficit e da dívida pública. Mas assume-se que será fácil financiar a dívida crescente pagando juros muito mais baixos e tributando mais o poupador.
O Programa quer estimular o investimento privado com mais gasto público, política monetária expansionista e câmbio mais desvalorizado. Ao mesmo tempo, irá provocar uma sensível piora do ambiente de negócios, com mais e mais altos impostos. O resultado, muito provavelmente, será uma inflação mais elevada, como ocorreu com a NME. Será que o investidor privado se interessará por esse país mais hostil, mais fechado em acordos comerciais sul americanos (outra meta do Programa) e que o acusa de querer empobrecer os trabalhadores?
O governo não endossou o Programa. Mas poderá fazê-lo mais à frente. “Mais uma dose? É claro que eu estou a fim”, já cantava Cazuza. A cachaça das políticas populistas rolou solta nas eleições de 2010 e 2014 e pode voltar a fazê-lo em 2018. Será muito ruim se isso ocorrer. O Brasil precisa de um ajuste econômico forte e rápido. Procrastinar, como se tem feito, só aumenta o problema e o risco de que políticos aventureiros ganhem as eleições, prometendo ajustar a economia sem impor sacrifícios a ninguém. A simples ideia de que algo como o Programa é uma possibilidade já vai tornar a saída da crise mais difícil.
Fonte: Valor Econômico, 04/03/2016
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