Como chegamos até aqui?
*Marcos Lisboa e Carlos Melo
Neste artigo, fazemos um contraponto. Apesar do avanço dos órgãos de investigação, ocorreram severos retrocessos institucionais na última década. Se realmente as instituições estivessem funcionando, não teríamos chegado à crise em que nos encontramos.
As instituições não se limitam a órgãos de controle e de investigação – que, aliás, estarão funcionando a contento quando efetivamente atenderem a um escopo mais amplo de casos e da população. Elas incluem os Poderes Legislativo, Judiciário e Executivo, partidos políticos e organizações da sociedade civil, bem como procedimentos que regulam a relação entre as diversas instituições, como, por exemplo, a independência dos poderes, o direito de propriedade, e a liberdade de imprensa, que requer meios de comunicação que não dependam da decisão discricionária de verbas controladas pelo Poder Executivo. Douglass North propôs o termo “Matriz Institucional”, que inclui as crenças e os códigos de conduta, que são elementos balizadores das tomadas de decisão dos indivíduos. O respeito a procedimentos previstos, a menor tolerância com inflação e a credibilidade da política são, por exemplo, aspectos de uma matriz institucional eficaz.
Desde 1990, a produção acadêmica passou a estudar os impactos do desenho das diversas instituições sobre o desenvolvimento econômico, como o respeito ao direito de propriedade, a eficiência do Judiciário e as regras para os mercados de crédito e os setores regulados. A melhor evidência empírica disponível corrobora a conclusão de North: “Instituições são mais importantes para o desenvolvimento econômico do que descobertas científicas”.
Nos últimos anos, o Brasil menosprezou a tarefa de constante aperfeiçoamento institucional. Imaginou-se, incorretamente, que o salto dado com o Plano Real fosse o bastante; que a estabilidade econômica havia se consolidado como valor da nação; que a racionalidade econômica se estabelecera como parâmetro da vida social e da política.
Ocorreram inegáveis avanços nas décadas de 1990 e 2000. Comparado com outros países do chamado Brics, o Brasil iniciou uma trajetória de melhora institucional. Com efeito, Rússia, Índia, China e África do Sul têm ambientes muito mais complicados que o nosso – inclua-se aí também o México, a Venezuela e a Argentina nesse período. Uma década e meia de crescimento razoável, em linha com o crescimento mundial, combinada com importante queda da desigualdade de renda, bastou para que se acreditasse em uma trajetória de desenvolvimento, como representada na famosa capa da Economist.
Desde o escândalo do mensalão, no entanto, o País desistiu de continuar com o processo de avanço institucional. Evidentemente, a expansão da economia internacional e o seu efeito doméstico contribuíram para a escolha que negou a necessidade de ajuste na campanha eleitoral. O bom momento nem sempre é bom conselheiro.
Não se percebeu que o sistema político caducava. Isoladas, algumas poucas vozes pregaram no deserto. Tanto quanto os economistas, que deram excessiva importância para a macroeconomia, a maior parte dos cientistas políticos louvou a “eficiência” do presidencialismo de coalizão brasileiro; olhavam para as medidas que o Poder Executivo conseguia retirar do Legislativo e viam nisso algum tipo de efetividade. Imaginou-se, até, que teríamos chegado ao bipartidarismo, com pouquíssima distinção entre os partidos mais relevantes (PT e PSDB). Olhava-se para a fotografia, sem compreender o filme. A dinâmica e a qualidade do processo foram negligenciadas, que resultou em fisiologismo e voracidade crescentes, expansão dos mecanismos para atender aos grupos de interesse, predominância do marketing político em detrimento do enfrentamento das dificuldades e, aos poucos, na disseminação da corrupção.
As conquistas se mostraram frágeis frente à política de ocasião. As regras fiscais foram sistematicamente desrespeitadas e o regime de metas de inflação foi enfraquecido. As contas de diversos governos estaduais foram aprovadas pelos Tribunais de Contas, apesar do virtual estado de insolvência das contas públicas. Houve retrocesso na microeconomia, com intervenções discricionárias do Poder Executivo; ingerência sobre tarifas públicas, bancos públicos e empresas estatais; e distribuição de privilégios para empresas e setores selecionados à margem de uma deliberação democrática informada sobre os custos e benefícios esperados. Enquanto isso, agências reguladoras foram fragilizadas ao ponto de se tornarem pouco relevantes, reduzindo o contraditório, essencial para a democracia. Cresceram as políticas pró-negócios, conduzidas de forma discricionária pelo Executivo, em detrimento de instituições pró-mercado, na distinção feita por Luigi Zingales.
A retomada do populismo resultou na distribuição disseminada de benefícios aos diversos grupos, incompatíveis com os recursos da sociedade, no crescente endividamento do poder público e na recessão com inflação elevada – surpreendente em um período de queda do preço do petróleo. Tudo isso sem reação adequada e tempestiva dos Poderes Legislativo e Judiciário. Com poucas exceções, os órgãos de controle foram apáticos, e a oposição, omissa. A crise decorre da ausência do ajuste que a campanha assegurou desnecessário.
Não houve o equilibrado contraponto dos poderes e a independência de diversos setores públicos e privados ao Poder Executivo de plantão. Protesta-se contra o aumento de tarifas de transporte como se o reajuste fosse culpa do gestor público, e não da inflação, a velha dama que ressurge. O emprego está ameaçado, e os sindicatos, financiados por recursos compulsoriamente arrecadados da sociedade, pressionam por ajustes salariais inconsistentes com os ganhos (inexistentes) de produtividade, aumentando o desemprego, a informalidade e os empregos em tempo parcial. Empresas enfrentam crise financeira e muitas fecham, enquanto Brasília se mantém distante do Brasil e refém da política pequena.
Recentemente, o governo federal começou a discutir temas importantes, como a reforma da Previdência, mas a sua base de apoio procurou interditar o debate, optando pelas frases fáceis que prometem muito, desqualificam a divergência e evitam discutir as dificuldades. O governo federal pagou as chamadas “pedaladas” por meio de operações que requerem uma avaliação dos mecanismos utilizados. Alguns governos estaduais utilizam depósitos judiciais entre partes privadas para pagar as suas despesas, sem a intervenção dos órgãos de controle. Os fundos de previdência das empresas estatais apresentam problemas decorrentes dos investimentos realizados e induz à inevitável pergunta: qual a atribuição do órgão regulador? Novas medidas de relaxamento fiscal e de benefícios para segmentos do setor produtivo são propostas à custa da sociedade. O Planalto propõe um discurso incompatível com as evidências sobre as razões da crise e se mostra incapaz de tirar o País do atoleiro, enquanto a oposição não reage, a menos quando abraça o populismo.
Ao contrário do senso comum, experimentamos as consequências do retrocesso institucional dos últimos sete anos, com a retomada do populismo que distribui benefícios para grupos selecionados em detrimento da maioria e das novas gerações. A política se perde nos interesses pequenos e falha na coordenação e priorização dos diversos interesses sociais.
A grave crise do começo dos anos 1990 teve, como efeito colateral, uma agenda de reformas institucionais, construída a partir de intensos debates na sociedade e no governo, e permitiu a retomada da normalidade econômica, o maior crescimento, a expansão das políticas sociais, e o fortalecimento das agências de Estado, como o Banco Central e as agências reguladoras.
Será que a crise atual, como nos anos 1990, permitirá enfrentar os problemas estruturais por meio de reformas que resultem na retomada do crescimento e dos avanços sociais? Será que resgataremos a agenda de fortalecimento das instituições democráticas, que garantam a transparência e estimulem o contraditório? A democracia se beneficiaria de regras e procedimentos que estabeleçam princípios para a intervenção pública, em particular a relação com os grupos de interesse, e as suas implicações sobre as novas gerações. A gravidade da crise decorre dos difíceis dilemas que o populismo prefere evitar. Para benefício da maioria, o momento requer clareza, política e liderança.
Fonte: Qualidade da Democracia, 9/03/2016.
*Marcos Lisboa é economista e presidente do Insper
*Carlos Melo é cientista político e professor do Insper
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