O cientista político Sérgio Abranches não apareceu no horário que havia combinado para conversar com “Época”. O entrevistador, tampouco. Melhor assim. Os dois atrasaram-se ao compromisso para assistir a um evento marcado às pressas: a cerimônia em que a presidente Dilma Rousseff empossou o ex-presidente Lula como ministro-chefe da Casa Civil. Autor do termo “presidencialismo de coalizão”, que descreve a delicada convivência entre os Poderes Executivo e Legislativo, Abranches analisou os simbolismos do primeiro ato do governo Dilma sob intervenção de seu padrinho político. “O governo adota um tom mais agressivo, exatamente como Lula vinha sugerindo nos últimos meses”, diz. Ao aumentar a polarização política, afirma, o governo Dilma caminhou mais alguns passos rumo ao abismo. “A única forma de superar essa crise é pela negociação. Historicamente, no Brasil, quando falhou a solução negociada para a crise, houve ruptura.”
Época – Como a nomeação de Lula à Casa Civil muda o tom do governo Dilma?
Sérgio Abranches – Mesmo sem discursar na cerimônia de posse dos ministros, Lula imprimiu ao governo Dilma uma nova marca. O evento foi um comício. Uma posse-comício. Dilma fez um discurso inflamado, com palavras de ordem. No auditório, viu-se uma quantidade grande de integrantes de movimentos sociais, de centrais sindicais e membros do Partido dos Trabalhadores. Foi um evento para inflamar a militância. O governo adota um tom mais agressivo. É exatamente o que o ex-presidente vinha sugerindo nos últimos meses. Já é a influência de Lula.
Época – A nomeação de Lula permite vislumbrar alívio ou agravamento da crise política?
Abranches – Para ter solução negociada, é preciso despolarizar. Na cerimônia de posse de Lula, tivemos justamente o contrário. O tom mais agressivo acirra ânimos que já estavam exaltados. Aumentou a polarização. Dilma deu a Lula um ministério num momento em que ele está visado, sob investigação. Lula leva para dentro do governo a irritação com o juiz Sergio Moro, que expediu contra ele um mandado de condução coercitiva e divulgou o conteúdo de conversas telefônicas.
Época – O discurso inflamado do governo volta-se contra o Poder Judiciário, mais do que a partidos de oposição. Em especial, ao juiz federal Sergio Moro e à Operação Lava Jato. Faz sentido duelar contra um braço do próprio Estado?
Abranches – Se alguém acha que o juiz Sergio Moro fez alguma coisa contra a Constituição, tem um caminho para combater isso. Obviamente, não é açulando a população e a militância contra ele, como fez Dilma em seu discurso e estão fazendo integrantes do governo. Atacar juízes é exacerbar a polarização. O Judiciário está investigando a corrupção e a constitucionalidade de certos comportamentos. Para isso ele segue um trâmite, um ritual. Se Moro exorbitou, o caminho efetivo é recorrer ou denunciar. Existem instâncias superiores, corregedorias.
Época – O Judiciário está agindo politicamente, como acusam Dilma e Lula?
Abranches – É muito difícil você acusar de politização um processo do Judiciário. Ele segue ritos inescapáveis que permitem tomar decisões dentro de uma interpretação majoritária da Constituição. Mesmo que ministros e juízes tenham visões políticas pessoais, eventuais distorções de julgamento vão se dissolvendo pelo filtro de outras instâncias. O componente subjetivo se dissolve na intersubjetividade das decisões colegiadas. Até agora, as decisões do juiz Moro na Lava Jato foram corroboradas pela segunda instância e pelo STF. Ocorre que, apesar de impessoais, as decisões do Judiciário adquiriram um enorme peso político.
Época – Por que o Poder Judiciário ganhou importância política?
Abranches – A hiperjudicialização da política é consequência do modelo de presidencialismo de coalizão que emergiu da Constituição. Depois de 1988, o Judiciário passou a cumprir, constitucionalmente, o papel interventor que os militares até então desempenhavam inconstitucionalmente. Nosso modelo político tornou-se muito dependente da harmonia entre os Poderes Executivo e Legislativo. Quando governo e Congresso entram em impasse, restam poucas alternativas. Sem buscar uma saída negociada e sem mudar o discurso político, é praticamente impossível. A radicalização polarizada produz paralisia e conduz a um processo de instabilidade cada vez pior, como estamos observando hoje. Temos um cenário que aponta para alguma ruptura: ou a renúncia, uma decisão particular e imprevisível, ou a cassação de mandato. Caminho obrigatório para a cassação, o Judiciário se torna decisivo na política. A hiperjudicialização decorre da incapacidade do sistema político de resolver suas próprias crises.
Época – Qual a capacidade do Judiciário de dirimir crises políticas?
Abranches – Pequena. O Judiciário interfere no processo político, mas sua lógica de atuação é politicamente ruim. Fundamentalmente, a Justiça é cega. Não tem objetivo de conciliação, apenas de investigar e julgar questões, à luz da lei. Cabe a ela decidir se você está certo ou está errado, sem se incomodar com as consequências desse julgamento. Quando entra uma ação contestando a posse do ministro Lula, isso gera uma enorme controvérsia política. Não é a maneira de solucionar uma crise. Se Lula for impedido definitivamente de assumir o ministério, essa crise será agravada. A solução das crises políticas tem de ser política e, no caso do presidencialismo de coalizão, a margem para isso acontecer é muito pequena.
Época – Quais as chances de o governo superar a crise atual de forma negociada?
Abranches – O atual cenário macroeconômico é incompatível com alguma estabilidade política. Incompatível. Temos inflação alta, desemprego alto e recessão pronunciada. A radicalização entre governo, Congresso e ruas torna a sobrevivência política ainda mais delicada. A única forma de superar essa crise é pela negociação. Uma negociação transpartidária, que encontre uma solução de compromisso. Historicamente, no Brasil, quando falhou a solução negociada para a crise, houve ruptura. Institucional ou política.
Época – A presidente Dilma tem repetido que “não vai ter golpe”. Existe alguma chance de golpe?
Abranches – Golpe é uma coisa muito clara: é o uso da força para depor um governo. Nada indica a possibilidade de uma ruptura institucional. Mas estamos caminhando para uma ruptura política. Pode ser via impeachment, via cassação de chapa, via renúncia…
Época – As manifestações do dia 13 de março foram as maiores da história política brasileira, e, ao mesmo tempo, não foram lideradas por políticos. Como isso
se explica?
Abranches – As ruas são um novo ator político no mundo inteiro. Os protestos contra o governo Dilma fazem parte desse fenômeno. Na Espanha, ele aconteceu com tanta força que gerou dois partidos políticos de esquerda. Está acontecendo na eleição presidencial dos Estados Unidos: o pré-candidato republicano Donald Trump representa isso pela direita e o democrata Bernie Sanders, pela esquerda. Esse novo ator político se articula pelas redes sociais, sobretudo por smartphones. Ele não quer o governo atual nem os políticos convencionais, mesmo os de oposição. Mas falta clareza sobre o que quer no lugar. Fruto dessa nova onda, o partido espanhol Podemos só faz política em redes sociais. Dá para ver pelos comentários, publicados na internet pelos correligionários, que sua visão de políticas públicas e política econômica está muito menos desenvolvida do que a capacidade de mobilização.
Época – De maneiras muito distintas, as ruas e o Poder Judiciário parecem exercer na política brasileira um papel semelhante: abalam o cenário atual sem chamar para si a responsabilidade de erguer algo no lugar.
Abranches – Exatamente. No curto prazo, eles agravam a crise. O Judiciário ficará mais discreto conforme o Poder Legislativo cobrir brechas na legislação que suscitam dúvida. O rito de impeachment é um exemplo. A força das manifestações de rua não deve ser menosprezada. Passeatas menores do que essa levaram ao fim da ditadura militar, nos anos 1970, e às eleições diretas, nos anos 1980. Os candidatos que conseguirem mostrar que atendem melhor às demandas das ruas, como a lisura, devem ganhar espaço já nas próximas eleições municipais.
Fonte: “Época”, 21 de março de 2016.
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