A economia política do lulopetismo foi decifrada pela revisão da meta fiscal aprovada no Congresso. O rombo de R$ 170 bi nas contas públicas, fruto da doutrina econômica abraçada por Dilma Rousseff, não inclui as futuras, incontornáveis, capitalizações da Petrobras, da Eletrobras e da Caixa, devastadas por um governo que sempre acusou seus críticos de nutrirem um projeto de destruição das estatais. Submetidas à colonização partidária, as empresas em estado falimentar sustentaram o bloco de poder articulado em torno do PT, financiando a maioria parlamentar governista. Mas, posta diante do impeachment, a esquerda brasileira brada contra um golpe imaginário e convoca o espectro de 1964.
Dilma deu a largada, falando em “tortura” e na “resistência” à ditadura militar. Samuel Pinheiro Guimarães recolheu o bastão, assegurando que o impeachment nasceu dos “mesmos golpistas históricos de 1964”. O jornalista Mino Carta, um entusiasta de Emílio Médici e da maquinaria de tortura em 1970, percorreu o trecho seguinte, escrevendo que “em 64, a casa-grande chamou os soldados para executar o trabalho sujo, desta vez os tanques são substituídos por uma Justiça politizada”. No mesmo diapasão, o efêmero ministro da Justiça Eugênio Aragão sugeriu que o juiz Sergio Moro faz uso de “extorsão” e, quase, de “tortura”. Finalmente, na inevitável hora dos artistas, as análises “históricas” e “jurídicas” cederam lugar à folia carnavalesca dos paralelismos: Caetano Veloso identificou nas manifestações anti-Dilma a alma da Marcha da Família e Wagner Moura comparou os escândalos descritos pela Lava Jato à “cruzada pela moralidade” que aureolou o golpe militar.
A nota musical do “retorno ao passado” embala igualmente a esquerda argentina desde o triunfo eleitoral de Mauricio Macri. No país vizinho, os órfãos do kirchnerismo manuseiam a expressão “direitos humanos”, uma senha traumática que remete à “guerra suja”, sempre que se referem ao novo governo. O jornalista Horacio Verbitsky, ex-dirigente dos Montoneros, profetizou ainda antes da posse que “o governo de Macri violará fortemente os direitos humanos”. De lá para cá, a profecia converteu-se em acusação sistemática, disseminada por variadas agências de propaganda e sob os mais diversos pretextos.
O presidente teria feito uma “prisioneira política”, na figura de Milagro Sala, fundadora da organização esquerdista Túpac Amaru, mesmo se a controvertida ordem de prisão partiu de um governador provincial que não pertence ao partido de Macri e foi confirmada pelo tribunal competente. Segundo um manifesto de intelectuais e artistas, o presidente seria um traidor do compromisso argentino “com a verdade, a memória e a justiça” porque um gestor cultural ligado à sua antiga gestão em Buenos Aires sugeriu que o número de desaparecidos políticos durante a ditadura está sujeito a debates históricos. De acordo com Hebe de Bonafini, líder das Mães da Praça de Maio, uma neo-kirchnerista que se rebaixou a ponto de aplaudir os atentados de 11 de setembro de 2001 e os sequestros das Farc, “Macri é um ditador criado pelo voto”, que “tira o emprego do povo” e “mata de fome”.
A esquerda corre em busca da ditadura perdida para escapar dos dilemas do presente. Numa ponta, o regime cubano anuncia a legalização de empresas que empregam trabalho assalariado e aposenta o tabu mais sagrado, explicando que “a propriedade privada em certos meios de produção contribui para a eficiência econômica”. Na outra, sob o “socialismo bolivariano”, a Venezuela desce rumo ao caos, ilustrando as implicações extremas do lulopetismo e do kirchnerismo. Mas os espantalhos de 1964 e da “guerra suja” desviam os olhares, adiando o encontro com a realidade.
É uma pena. Brasil e Argentina precisam da voz de uma esquerda lúcida, curada da maldição do sonambulismo.
Fonte: Folha de S.Paulo, 28/05/2016.
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