A socióloga americana Beatrice Edwards, especialista em medidas anticorrupção e reforma do serviço público, é diretora do programa internacional do GAP (Government Accountability Project, ou Projeto de Responsabilidade Governamental), uma organização sem fins lucrativos com sede em Washington, nos Estados Unidos. A missão do GAP é fazer a defesa judicial e a assessoria de delatores e informantes dos setores público e privado. Em quase quatro décadas de atuação, a entidade deu assistência a mais de 6000 pessoas, entre elas Edward Snowden, o funcionário do serviço secreto americano que, em 2013, revelou como o governo dos EUA espionava líderes mundiais e cidadãos comuns. Beatrice falou a “Veja” por telefone.
Qual é a diferença entre informantes e delatores?
Os primeiros são o que chamamos em inglês de whistleblowers, denunciantes altruístas que tomam a iniciativa de vazar informações para as autoridades ou para a imprensa por acreditar que isso é o melhor para a sociedade e para as organizações das quais fazem parte. Já os delatores são pessoas que, depois de presas por envolvimento em um crime, passam a colaborar com a Justiça.
Faz diferença se uma pessoa denuncia uma ilicitude por achar que é o melhor para o país ou por mera vingança ou, ainda, porque quer reduzir em alguns anos sua pena de prisão?
Não importa a motivação de quem denuncia. O que deve ser considerado é se a denúncia é verdadeira ou não. E isso só se descobre com investigação e provas. Definitivamente, o objetivo de quem entregou a informação é irrelevante e não pode ser usado para transformar a denúncia em algo ilegítimo.
Os delatores então não são “piores” que os informantes?
Eles são o caminho clássico e mais eficiente para acabar com as máfias. Começa-se prendendo quem está no nível mais baixo da organização criminosa e segue-se avançando até chegar aos patamares mais elevados. Nos Estados Unidos, essa é uma estratégia típica para combater o crime organizado.
Mas dar informações em troca de redução da pena não é um caminho para a impunidade?
Não, ao contrário. Foi por meio desse expediente que o FBI, a polícia federal americana, venceu a máfia Cosa Nostra. No caso Watergate, por sua vez, os primeiros a ser presos na tentativa de invasão da sede do Partido Democrata, em 1972, entregaram aqueles que estavam acima deles, de forma que a investigação chegou ao gabinete do presidente Richard Nixon, que veio a renunciar dois anos depois.
Os esqueletos no armário dos delatores não reduzem a credibilidade de suas denúncias?
Evidentemente, o suspeito de um crime tem sua credibilidade afetada e, por isso, a troca de informações por benefícios judiciais precisa ser cercada de cuidados. Quem faz a denúncia tem a obrigação de produzir ou fornecer provas, ou pelo menos o caminho para que elas possam ser obtidas. Foi assim no Watergate e é assim que está ocorrendo no Brasil, no âmbito da Operação Lava-Jato. Por mais que se tente desqualificar os delatores, eles são muito importantes nas investigações.
Qual é o perfil dos denunciantes aos quais sua ONG costuma dar assistência?
Inicialmente, os denunciantes eram basicamente funcionários do governo federal. Esse perfil mudou bastante. Entre nossos clientes — nossos advogados os tratam assim, como “clientes” —, temos informantes dos mais diversos organismos internacionais, como a ONU (Organização das Nações Unidas), o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), o Banco Mundial e a Opas (Organização Pan-Americana da Saúde). Quando a bolha imobiliária dos Estados Unidos estourou, precedendo a crise financeira de 2008, passamos a acompanhar denunciantes oriundos do setor financeiro. Também recorrem a nós ex-funcionários das indústrias alimentícia e farmacêutica. Graças a eles, segredos como os efeitos colaterais de determinados remédios, que eram mantidos sob sigilo, ou o uso de ingredientes proibidos nos alimentos, como aqueles considerados cancerígenos, puderam ser conhecidos. Não se trata de segredos industriais, mas de segredos com impacto sobre a saúde pública e o meio ambiente.
Vocês os orientam nas denúncias?
Eles nos procuram depois que já falaram e, na maioria das vezes, quando já foram descobertos e estão na iminência de ser punidos. Aliás, esse é o fim quase certo de quem denuncia. Em vez de a pessoa ganhar uma promoção ou um aumento de salário, passa a ser tratada como um problema. Uma injustiça, porque muitos dos que assumem o risco de revelar irregularidades ou crimes praticados em sua empresa, organização ou órgão público acreditam na missão de seus empregadores, apenas discordam do rumo das coisas.
Quase sempre, então, os denunciantes pagam um preço alto por seus atos?
É algo inexorável. As instituições sabem ser muito pacientes. Uma vez identificado o informante, são capazes de esperar por mais de um ano para puni-lo. Por exemplo, a pessoa que, em 2007, denunciou Paul Wolfowitz, então presidente do Banco Mundial, por ter promovido a própria namorada e concedido a ela um aumento de 40% permaneceu no banco por dois anos até ser demitida sob a acusação de ter vazado informações para a imprensa.
O governo americano costuma buscar a punição imediata, como ocorreu nos casos do então militar Bradley Manning, que vazou segredos diplomáticos pelo WikiLeaks, e de Edward Snowden, que denunciou a NSA (Agência de Segurança Nacional, na sigla em inglês).
Isso acontece quando as autoridades querem dar o exemplo, mostrar aos outros empregados o que pode ocorrer se algum deles pensa em fazer algo parecido. Foi o que se deu quando a Justiça americana pediu a extradição de Edward Snowden.
Segundo as leis americanas, tanto Snowden quanto Manning cometeram crime. Como equilibrar a defesa das denúncias e de seus denunciantes com a defesa da lei?
O que defendemos é que informar o público sobre um crime nunca pode ser considerado um crime. Durante o julgamento do militar que vazou os telegramas diplomáticos para o WikiLeaks, o juiz pediu aos promotores que as Forças Armadas apresentassem uma avaliação, com base em fatos, dos danos que o soldado provocou à segurança de cidadãos americanos. O governo e as Forças Armadas nunca apresentaram o tal documento, nem publicamente nem de maneira confidencial. Na melhor das hipóteses, as autoridades não sabiam sequer como medir isso. Acredito que não houve dano real à segurança dos Estados Unidos. No caso da NSA, foi constituída uma comissão no Congresso para avaliar a denúncia de Snowden. Os parlamentares concluíram que toda a vigilância secreta e ilegal denunciada por ele teve muito pouco resultado prático. Uma das ações na Justiça considerou a atuação da NSA inconstitucional. O governo americano usa uma lei de 1917, aprovada no contexto da Primeira Guerra Mundial, para tratar como espiões esses denunciantes. O que Snowden fez não é espionagem.
A senhora diz que Snowden não é um espião. Mas não é suspeito o fato de ele ter se asilado justamente na Rússia, país que sabidamente se esforça para espionar os Estados Unidos?
Antes de aceitarmos atuar no caso dele, também achamos que essa rota de fuga era bastante suspeita. Fizemos nossa própria investigação para compreender a situação e chegamos à conclusão de que esse foi o refúgio mais seguro que ele encontrou. Snowden planejava ir para o Equador, mas era impossível sair da Rússia sem correr o risco de ser preso. De certa forma, foram os Estados Unidos que o obrigaram a ficar na Rússia.
Que tipo de assistência vocês dão a Snowden?
Não chegamos a atuar na esfera judicial, mas, até que Snowden resolvesse falar por si mesmo, éramos nós que nos posicionávamos por ele publicamente. Atuamos apenas como porta-vozes.
Como garantir a proteção dos informantes?
A melhor proteção é ninguém saber quem foi a fonte. Tivemos casos em que nem nós sabíamos quem era o denunciante. Parece-me que esse é o caso dos Papéis do Panamá (o vazamento, revelado neste ano, de quase 12 milhões de documentos de um escritório panamenho especializado em abrir empresas em paraísos fiscais). O autor do vazamento divulgou um manifesto em que explica por que resolveu expor os documentos, mas manteve-se anônimo.
Como confiar na informação sem conhecer a fonte?
Denúncias desse tipo são, realmente, mais difíceis de investigar. Quando o denunciante é conhecido, pode atuar como guia sobre o que dizem os documentos. Os jornalistas envolvidos nos Papéis do Panamá tiveram de suprir essa falta com investigações próprias. Por isso necessitaram de tanto tempo e da ajuda de tantas pessoas ao redor do mundo para esquadrinhar todos aqueles documentos. Essa experiência chamou atenção para um novo tipo de jornalismo que tem ganhado força nos Estados Unidos: os consórcios formados por profissionais experientes que fundaram organizações dedicadas ao jornalismo investigativo e que trabalham de maneira integrada com grupos semelhantes em diversos países.
A tecnologia ajuda a encurralar os corruptos?
Ela mudou os métodos de denúncia. Com um simples computador e acesso à internet, pode-se vazar uma quantidade de informações impensável antigamente. Quando o analista militar Daniel Ellsberg vazou os documentos sobre a Guerra do Vietnã, nos anos 70, no caso que ficou conhecido como Papéis do Pentágono, ele teve de fazer milhares de fotocópias, ao longo de meses, numa operação arriscada. Aquele material hoje cabe no bolso, armazenado em um pen drive. Mas as organizações também se modernizaram e criaram métodos para identificar quem vaza. Acredito que, no caso dos Papéis do Panamá, é só uma questão de tempo para que o responsável pelo vazamento seja descoberto e perseguido.
Existem situações em que o segredo de Estado é melhor que a transparência?
Sim. O vazamento de dados sobre localização de armas, movimentação de tropas e operações militares em curso, por exemplo, pode ser letal. O que não é admissível é que segredos de guerras que já acabaram estejam disponíveis apenas para alguns privilegiados. Nos Estados Unidos existe uma infinidade de documentos classificados que remetem a eventos ocorridos há muito tempo e aos quais os cidadãos não têm acesso.
Fonte: “Veja”, 18 de maio de 2016.
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