Se um marciano pousasse em Brasília, ficaria chocado ao saber que a inflação se mantém alta, apesar de o país enfrentar uma das piores recessões de sua história, com o desemprego superando os 10% e o PIB caindo quase 4% ao ano. Também se surpreenderia ao se dar conta de que a taxa de juros é uma das maiores do mundo, apesar de o déficit primário do setor público ser relativamente pequeno. Concluirá o marciano que, para entender o Brasil, não basta pousar o disco voador e olhar os números. É preciso conhecer a história do país. Segundo Edmar Bacha, que participou da equipe que instituiu o Plano Real, este é o esforço feito pelos economistas Felipe Salto e Mansueto de Almeida, no livro Finanças públicas: da contabilidade criativa ao resgate da credibilidade (Editora Record, 2016). A obra, que reúne uma série de artigos de diversos economistas, será lançada em São Paulo nesta quinta-feira (11).
Para os autores, o cerne do atual desarranjo na economia brasileira foram as políticas de expansão de gastos, superiores à arrecadação, adotadas pelo governo do PT nos últimos anos. Essa herança impõe dificuldades ao ajuste fiscal em curso, empreendido pelo governo interino de Michel Temer. No entanto, nada está perdido. “Felizmente, as manobras poderão ser revertidas em futuros governos, restabelecendo-se em algum momento a credibilidade e a respeitabilidade das contas públicas e das instituições fiscais”, dizem os autores no livro.
Em entrevista a ÉPOCA, Salto acredita que o governo está no caminho certo. Isso mesmo após ter feito algumas concessões para viabilizar projetos de austeridade no Congresso, como o de renegociação da dívida dos estados, em que vem cedendo na proibição de reajustes a servidores públicos acima da inflação por dois anos. Para ele, há diversas medidas a ser adotadas no curto prazo, como a revisão de contratos, a securitização das dívidas e a desindexação de benefícios ao salário mínimo. Para o governo se financiar, no entanto, as alternativas são limitadas. Emitir títulos da dívida para financiar gastos é hoje uma opção cara e restrita, devido aos juros altos. Também não seria razoável apostar na emissão de moeda pelo Banco Central (BC), que pressionaria a inflação. “No curto prazo, restará ao governo aumentar impostos”, diz. Confira trechos da entrevista.
ÉPOCA – Segundo o livro, a herança da contabilidade criativa do governo do PT terá efeitos para o período 2015-2018. Quais dificuldades ela coloca para o ajuste fiscal em curso?
Felipe Salto – Essa herança maldita é resultado de práticas que golpearam o espírito da lei de responsabilidade fiscal: não gastar mais do que se arrecada. Nos últimos anos, medidas no mínimo questionáveis promoveram uma expansão fiscal muito maior do que o país suportaria. Enquanto o crescimento desacelerava, o governo gastava. Avançou em despesas obrigatórias e assumiu compromissos difíceis de ser equacionados. Estamos com um déficit nominal, considerando juros, de mais de R$ 600 bilhões no acumulado em 12 meses até junho. Isso para um país que já tinha conseguido gerar superávits primários [economia para o pagamento de juros da dívida] e que estava numa trajetória de queda da relação dívida-PIB. Foi um retrocesso. É nesse contexto que o governo interino tem de atuar para reverter esse histórico.
ÉPOCA – Medidas de austeridade mais duras são necessárias para que seus efeitos sejam sentidos no curto prazo?
Salto – O ajuste não deve ser feito da noite para o dia, pois pode aprofundar a recessão. É preciso uma estratégia fiscal de curto, médio e longo prazo, com medidas bem comunicadas, e duras, tanto do lado da receita como do gasto, para que elas permitam recuperar os esforços fiscais. Com sorte, daqui a quatro anos, conseguiremos inverter a trajetória de alta da relação dívida-PIB. No ritmo atual de geração de déficit, a dívida poderá chegar a 100% do PIB em 2020. Mas isso não deverá acontecer, pois já há mudanças na política fiscal.
ÉPOCA – Considerando as recentes concessões feitas pelo governo recentemente, acredita que o ajuste fiscal foi descaracterizado?
Salto – O ajuste fiscal deve ser o possível. Em economia, tudo é circular. Para ter um ajuste fiscal maior, deve-se ter crescimento. Mas isso não vai acontecer caso não se estabeleça o mínimo de confiança e credibilidade, o que depende do ajuste. Essas coisas têm de ser bem calibradas, para que o governo não erre a mão. Não pode ceder demais às pressões, por maiores salários, por exemplo, mas também não pode ser rigoroso demais a ponto de gerar um ajuste que prejudique a atividade. Em linhas gerais, o governo está conseguindo. Tomou algumas medidas que sinalizam uma condição fiscal melhor no médio e longo prazo. Faltam, no entanto, medidas para apagar o incêndio, pois o prédio continua pegando fogo.
ÉPOCA – Que medidas seriam essas?
Salto – Medidas do lado da receita. Por exemplo, a securitização da dívida ativa. O Projeto de Lei 204/2016, que tramita no Senado, autoriza que estados, municípios e União vendam crédito decorrente de dívidas para o setor privado. Isso poderia render ao governo R$ 55 bilhões em um ano. Uma alternativa é a revisão de contratos da administração pública. Observamos uma ineficiência muito grande na compra de material, de bens e serviços. Por diversas vezes, o Estado paga mais que o necessário. Segundo cálculos que fiz, daria para economizar R$ 12 bilhões anuais. Uma terceira medida é repensar as regras de indexação do salário mínimo. Há uma série de benefícios sociais, como o seguro-desemprego, que cresce junto ao mínimo. Isso gera uma rigidez no Orçamento e um gasto automático que prejudica o ajuste. Poderia ser criado um indexador específico para esses programas. A economia anual seria de R$ 25 bilhões. Há muitos caminhos para equilibrar as contas públicas com efeitos no curto prazo.
ÉPOCA – Segundo a curva de Laffer, citada no livro, a alta de impostos aumenta a arrecadação do governo, mas até certo ponto. Depois disso, o governo passa a perder receitas, porque a sociedade reage e para de consumir. O Brasil já atingiu esse nível máximo de contribuição?
Salto – Não estamos nesse limite extremo, mas chegando perto. Sabemos que a sociedade tem uma percepção de que a carga tributária é muito alta, para uma qualidade baixa de serviços públicos. Mas, ainda assim, creio que há espaço. O contexto atual é grave. Temos uma dívida muito cara para ser emitida. Essa seria uma alternativa para financiar dívida pública, mas está restrita. A outra alternativa seria a emissão de moeda, mas o problema é que gera inflação. No curtíssimo prazo, sobra, portanto, aumentar impostos.
ÉPOCA – Qual seria o imposto com o melhor custo-benefício?
Salto – Defendo o aumento da Cide, sobre combustíveis. Do ponto de vista econômico, arrecada uma quantia considerável. Se elevarmos o tributo para a alíquota máxima, de atuais 10 centavos de reais para 86, no caso da gasolina, e de 5 para 39, no caso do diesel, o setor público arrecadaria R$ 41,4 bilhões adicionais. Só a União ficaria com R$ 29,4 bilhões. Isso poderia ser feito por decreto, ou seja, não precisaria passar pelo Congresso. A desvantagem é o impacto na inflação. Mas todo aumento de imposto impacta a inflação. Quem é contra superestima esses efeitos. Há quem diga que geraria mais de 1 ponto percentual no IPCA do ano. Acho que é menos. A emergência agora é resolver o impasse fiscal. A inflação está relativamente controlada, caminhando para níveis mais baixos, em razão da recessão. Tem de colocar na balança os custos e os benefícios. Neste caso, o benefício para a receita é significativo.
ÉPOCA – E a recriação da CPMF?
Salto – Sou contra. Geraria um custo político enorme. Prefiro a Cide e a securitização de dívidas. Em uma analogia, o “dono do restaurante”, ou o presidente, chegou com uma fatura bilionária. Uma parte será paga pelo corte de despesas e venda de dívidas, do lado do gasto. De outro, a ajuda virá pela arrecadação, com um possível aumento de impostos. O momento atual é de um esforço coletivo na direção de um ajuste maior.
ÉPOCA – Cresce no mercado a avaliação de que o otimismo está arrefecendo, sobretudo depois de o governo ceder em medidas impopulares no Congresso. A lua de mel entre investidores e Temer está com os dias contados?
Salto – A equipe econômica atual tem muita credibilidade. É claro que o crédito está sendo gasto parcialmente. O governo apostou em algumas medidas, que acho equivocadas, como o reajuste salarial a servidores em plena crise fiscal. Agora, é compreensível em um contexto político de um governo interino. O impeachment não está ratificado. Temer precisou fazer concessões. Podemos discutir se foram além ou aquém do necessário. De outro lado, houve avanços importantes em projetos como o da PEC do teto de gastos. O saldo líquido é positivo. Mas, claro, poderia ser maior.
ÉPOCA – O que poderia acontecer se as concessões forem ampliadas?
Salto – Se não mudar, repetiremos os mesmos erros do governo passado. Só que agora não há mais gordura para queimar. Não temos arrecadação, crescimento, nem a bonança externa para ajudar o Brasil a avançar sem muito esforço. É um cenário pessimista, mas quando passar o impeachment, o governo terá mais força política e conseguirá tomar medidas de curto prazo. Elas têm um custo mais elevado, como a renegociação de contratos, elevação da Cide, entre outras. Depois do impeachment, o governo passará a agir sem muito dedo, sem pisar em ovos, como está hoje.
ÉPOCA – Em um capítulo à parte, você chama a atenção para o peso das políticas do BC sobre o déficit total do governo. Quais medidas deveriam ser revistas?
Salto – O BC tem independência operacional no regime de metas de inflação. Mas isso não exclui a necessidade de lançar luz sobre seus gastos. Em 2015, com operações de swap cambial, que equivalem à venda futura de dólares, foram gastos R$ 90 bilhões. Isso significa quase quatro vezes o orçamento anual do programa Bolsa Família. Ninguém cobra resultados, nem a eficiência dessas práticas. A outra questão são as operações compromissadas, que constituem dívida pública. Há operações hoje que respondem por R$ 1 trilhão. Pelo menos 15% desse volume é refinanciado diariamente, a taxas iguais à Selic. O custo delas é alarmante. Em um contexto em que o país está voltando à estabilidade, não faz sentido manter esse volume de operações. Isso precisa ser revisto, pois afeta a inflação. Um terceiro ponto diz respeito às reservas internacionais. Desde 2008, há uma lei que determina que, semestralmente, o BC apura se teve lucro ou prejuízo, de acordo com a variação do câmbio. Se tiver lucro, o banco transfere o valor para o Tesouro. Mas, quando tem prejuízo, é o Tesouro que cobre o buraco com a emissão de títulos públicos para a carteira do BC. Ou seja, é criado um mecanismo de financiamento incestuoso. É um cordão umbilical que precisa ser cortado.
Fonte: Época.
No Comment! Be the first one.