Em clima olímpico, mais uma vez pudemos testemunhar o pugilato argumentativo no Supremo Tribunal Federal. Desta vez, a disputa deu-se em torno da discussão sobre a inelegibilidade de prefeitos que tiveram suas contas impugnadas por tribunais de contas.
A Constituição conferiu ao legislador a responsabilidade para determinar os casos de inelegibilidade, o que foi feito por intermédio da lei complementar 64, de 1990, alterada pela 135, de 2010, que se tornou conhecida como Lei da Ficha Limpa.
Diversos dispositivos dessa lei tiveram sua constitucionalidade questionada perante o Supremo em 2012. Em especial questionou-se a validade de autorizar-se a impugnação de candidaturas sem sentença condenatória transitada em julgado, de forma a preservar os princípios da presunção de inocência e da segurança jurídica. A conclusão do tribunal, no entanto, foi a de que inelegibilidade não é pena, portanto não está submetida a princípios tão estritos. Mais do que isso, a Constituição explicitamente autorizou o legislador, por intermédio do seu artigo 14, parágrafo 9º, a estabelecer outros casos de inelegibilidade. Assim, ao estabelecer que um candidato se torna inelegível por ter tido suas contas rejeitadas pelos órgãos competentes, por irregularidade que configure ato doloso de improbidade, o legislador não afrontou a Constituição.
Nestas duas últimas semanas, no entanto, a decisão que regeu a eleição de 2014 foi enfrentada pelo Supremo, que aparentemente reviu a posição do TSE, ao determinar que os pareceres dos Tribunais de Contas que impugnam as contas de um prefeito não são suficientes para que a Justiça Eleitoral barre uma candidatura. Necessário será, de acordo com a maioria do Supremo, que as Câmaras Municipais aprovem o referido parecer, para que eles possam gerar o efeito de impedir uma candidatura.
O problema é que a própria Constituição afirma que: “o parecer prévio, emitido pelo órgão de controle competente (Tribunal de Contas)… só deixará de prevalecer por decisão de dois terços dos membros da Câmara Municipal” (artigo 31, parágrafo 2º. Da CF). Ou seja, que a decisão do órgão técnico tem validade enquanto não for contrariada por uma decisão explícita do órgão político, por uma maioria expressiva de seus membros.
Ao decidir que enquanto a Câmara Municipal não aprovar o parecer prévio do Tribunal de Contas esse não poderá servir para a impugnação de campanhas, a maioria dos ministros do Supremo, salvo melhor juízo, inverteu o sentido claro do disposto no artigo 31, parágrafo 2º da Constituição.
Isto é problemático não apenas porque não é dado ao Supremo a competência para inverter o sentido de normas constitucionais, mas também porque, ao fazê-lo, permitiu que a inércia das Câmaras Municipais transforme os pareceres emitidos pelo Tribunais de Contas em letra morta.
Podemos concordar ou não com a decisão do Supremo quanto ao mérito da disputa; se o legislador estava ou não embriagado ao estabelecer a Lei da Ficha Limpa. Porém, ao mudar a jurisprudência, introduzindo uma verdadeira “novidade normativa” num processo eleitoral já em curso, o Supremo concedeu às suas decisões uma autoridade que não confere sequer às emendas constitucionais, por força do artigo 16 da Constituição. E isso não é sinal de moderação.
Fonte: Folha de S.Paulo, 20/08/2016.
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