A Constituição não pode ser tratada como um pacto suicida. Por isso, dispõe de mecanismos de reforma, que permitem a uma maioria qualificada fazer correções de rumo. Não há dúvida de que o Estado brasileiro vem gastando mais do que arrecada e isso precisa ser urgentemente corrigido, antes que a embarcação vá a pique. Nesse sentido, estabelecer um dispositivo que limite os gastos públicos é essencial.
Direitos e privilégios
O modelo escolhido pela PEC 241, no entanto, guarda problemas. Da perspectiva constitucional, o seu principal vício é não fazer a devida distinção entre direitos fundamentais e privilégios indevidamente incrustados no sistema jurídico. Esta distinção é fundamental, não apenas por uma questão moral, mas também jurídica, na medida em que a Constituição não confere aos privilégios a mesma proteção que assegura aos direitos fundamentais (artigo 60, 4º., IV).
A distinção não é simples, até porque direitos e privilégios têm estruturas semelhantes. Ambos indicam a existência de uma relação jurídica em que o sujeito do direito, ou do privilégio, é beneficiário de deveres por parte de outras pessoas ou do Estado. O que permite que muitos privilégios se encontrem camuflados entre os direitos.
As principais distinções entre essas duas categorias jurídicas são o modo como são distribuídos e a forma como são justificados. Direitos são distribuídos de maneira mais imparcial, o que significa que se uma pessoa tem um determinado direito, todas as demais deveriam ser beneficiárias deste mesmo direito. Por outro lado, a promoção de valores de máxima importância para a comunidade, como igualdade, liberdade ou dignidade é o que justifica a criação de um direito.
Os privilégios, por sua vez, beneficiam grupos menores, eventualmente uma única pessoa, excluindo-se todas as demais. Grande parte dos privilégios carecem de uma justificativa moral mais robusta. No mais das vezes, decorrem do mero fato de que um grupo tem o poder de impor seus interesses sobre toda a sociedade, que passa a arcar com seus custos.
Ao estabelecer um teto horizontal aos gastos públicos, a PEC 241 não foi capaz de reconhecer essa distinção essencial, conferindo o mesmo tratamento fiscal a privilégios, voltados a maximizar os benefícios de grupos poderosos, e a direitos fundamentais, que têm por finalidade garantir a dignidade humana e promover um padrão mínimo de justiça social. A inexistência de um mecanismo sensível a essa distinção, que dê prevalência aos direitos fundamentais sobre outros interesses, macula o novo regime fiscal proposto pela PEC 241 e irá gerar intermináveis batalhas judiciais.
É ingênuo crer que a transferência para o nosso Congresso da solução de todos os conflitos distributivos irá favorecer os direitos difusos da maior parte da população, que depende de serviços como educação, saneamento, assistência social e saúde, em detrimento de interesses específicos dos setores mais poderosos por empréstimos com juros subsidiados, aposentadorias opulentas ou um sistema tributário regressivo e forrado de exonerações e incentivos aos mais ricos. Em momentos de escassez os conflitos tendem a se agravar e os mais fortes a levar a melhor. É a lei da natureza, mas não o que prevê a Constituição.
Fonte: Folha de S.Paulo, 15/10/2016.
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