Em 30 de abril do ano passado, Heleno Torres, doutor e professor de Direito Tributário da Universidade de São Paulo, foi ao Senado. Falou, como especialista, à Comissão Parlamentar de Inquérito do HSBC. Na ocasião, expôs como o governo deixava de angariar recursos por causa de bens de brasileiros mantidos no exterior e não declarados à Receita Federal. A ideia chamou a atenção do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), que, no mesmo dia, o chamou para almoçar no restaurante do Senado. “Foi plantada ali a semente do projeto de repatriação de bens”, diz Rodrigues, referindo-se ao programa encerrado na semana passada, que engordou os cofres públicos em R$ 50,9 bilhões.
Dois dias após aquele almoço, Torres entregou ao parlamentar o projeto formal, inspirado na experiência internacional, sobretudo a italiana, que enfatizava a necessidade de os recursos terem origem lícita. A intenção era aumentar a arrecadação e, ao mesmo tempo, contribuir para o desmantelamento de paraísos fiscais. A proposta de Torres vinha em boa hora – as contas públicas brasileiras já estavam em frangalhos – e chamou a atenção do então ministro da Fazenda, Joaquim Levy. Debatiam-se propostas similares havia pelo menos dez anos. O deputado José Mentor (PT-SP) havia apresentado uma. Mas o projeto escolhido por Levy como inspiração foi o de Torres e Rodrigues. Com base no texto do professor de Direito, o governo de Dilma Rousseff apresentou à Câmara uma proposta própria, o Projeto de Lei 186. Empolgou aliados e oposicionistas. Em dezembro, o Congresso concluiu a aprovação.
A lei foi regulamentada pela Receita Federal em abril deste ano. A partir de então, até 31 de outubro, brasileiros e estrangeiros com negócios no país passaram a ter a chance de regularizar, com condições facilitadas, bens lícitos mantidos no exterior. Foram regularizados R$ 170 bilhões – fatia relevante dos mais de R$ 600 bilhões potenciais estimados pelo Global Financial Integrity, uma ONG baseada nos Estados Unidos que monitora o fluxo de capital global.
Nas contas do atual ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, dos R$ 50,9 bilhões arrecadados, R$ 38,2 bilhões vão para a União. Municípios e estados ficarão com R$ 12,7 bilhões (leia o gráfico). Da fatia do governo federal, a maior parte será destinada a cobrir despesas não quitadas de administrações passadas. Outra parte amenizará o rombo de R$ 170,5 bilhões nas contas públicas estimado para este ano.
O governo deveria considerar, desde já, lançar nova rodada de repatriação. O programa superou a arrecadação em iniciativas similares de outros países, como Estados Unidos (US$ 8 bilhões, em 2009) e Chile (US$ 1,5 milhão, encerrado em 2015). Nas últimas semanas de outubro, o trabalho foi intenso nos escritórios de advocacia tributária. Eles preparavam as regularizações pedidas por clientes seduzidos pela oportunidade. Profissionais da área avaliam que o calendário tumultuado de 2016, com o impeachment de Dilma e eleições municipais, diminuiu a arrecadação. “Muitos deixaram para decidir na última hora, pois contavam com a prorrogação do prazo”, afirmou Miguel Silva, do escritório Miguel Silva & Yamashita. Segundo ele, a procura cresceu muito ao longo dos 30 dias finais. O tributarista Samir Choaib também percebeu a corrida no fim do prazo e diz que a arrecadação poderia ter sido maior. “Houve dúvidas sobre o valor a ser regularizado”, afirma.
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), tentou fazer avançar um projeto que, defendia, esclareceria algumas das dúvidas. O aspecto mais controverso era se o governo queria a “foto” de 31 de dezembro de 2014 ou o “filme” da movimentação de dinheiro até aquela data. Nas contas de Maia, as mudanças garantiriam arrecadação adicional de até R$ 40 bilhões. O presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), disse que apresentará outro projeto de lei ao governo e que ele terá potencial para arrecadar outros R$ 50 bilhões. Um projeto futuro precisará chegar a um balanço – oferecer termos atraentes, mas não a ponto de prejudicar quem aderiu ao primeiro projeto. A repatriação, apenas, não resolve a crise fiscal. Mas prova que o governo se beneficiará se trabalhar em diversas frentes para equilibrar a economia.
Fonte: “Época”.
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