Dono de duas lojas de calçados em uma movimentada rua de Belo Horizonte (MG), Francisco*, 52 anos, está sentindo os efeitos da crise. Há dois anos, o faturamento chegava a R$ 40 mil por mês. No início de 2016, porém, caiu para R$ 15 mil mensais. “Tudo o que ganho, eu invisto na empresa. Compro modelos básicos, que não saem de moda. Assim consigo manter um bom estoque para enfrentar os piores momentos”, diz Francisco. Pai de duas filhas, uma de 10 anos e outra de 18, ele já treina as herdeiras para trabalhar na loja. “Elas adoram o comércio”, diz, orgulhoso.
O espírito empreendedor é algo recente na vida de Francisco. Durante muito tempo, ele teve uma única ambição: sair da cadeia. Nos anos 1980, ele integrou uma quadrilha de tráfico de drogas que atuava na região metropolitana de Belo Horizonte. Preso em 1982, passou 25 anos encarcerado. Nessa fase, a fuga era o único pensamento em sua mente. “Quando você sabe que vai passar tanto tempo na cadeia, a cabeça fica variando, vai a mil”, afirma Francisco. Cumprindo pena na penitenciária Nelson Hungria, em Contagem, região metropolitana de Minas Gerais, ele sentiu que havia chegado ao seu limite. “Estava explodindo, a ponto de fazer uma besteira.”
Em 1999, tomou a decisão que iria mudar a sua vida: escreveu uma carta ao juiz da Vara de Execuções pedindo transferência para uma Apac — sigla para Associação de Proteção e Assistência aos Condenados. Nesse tipo de instituição, ele não precisaria ficar trancado em uma cela. Em vez disso, teria a oportunidade de estudar e trabalhar. A resposta positiva do juiz foi recebida com alívio. Mas, ao chegar à Apac de Itaúna (MG), ele não sabia bem o que o esperava. “Acostumado a cruzar os braços no presídio, demorei seis meses para perder o hábito”, diz. Aos poucos, porém, foi se ajustando à nova rotina. “Na Apac era tudo diferente. Tinha dignidade, tinha banho quente. Vi que podia soltar os braços.”
Trabalho, estudo e orientação profissional passaram a fazer parte da vida de Francisco. Em 2002, conquistou o direito de cumprir a pena em regime semiaberto — nessa modalidade, o detento pode exercer atividade profissional ou fazer cursos fora da instituição. Nessa fase, conheceu Fátima*, durante uma visita à casa de um amigo. Juntos, os dois decidiram empreender. Com um empréstimo de R$ 5 mil, Francisco começou a produzir sapatos, habilidade que havia aprendido na infância com o pai. Da fabricação, foi para o varejo: ainda em 2002, o casal abriu uma loja de 40 m² em um ponto de alta circulação em Belo Horizonte. Em 2009, com Francisco já no regime aberto, abriram uma segunda loja, com produtos de maior qualidade. A estratégia deu certo: em 2013, conquistaram um faturamento mensal de R$ 40 mil. “Acredito que o talento para o comércio sempre esteve dentro de mim”, diz Francisco, que teve sua pena extinta em 2014.
“Ganhar dinheiro por conta própria dá dignidade ao egresso do sistema penitenciário. A opção pelo empreendedorismo faz com que ele se sinta inserido na sociedade”, diz Maurílio Leite Pedrosa, gestor do Instituto Minas pela Paz. Criado em 2007 por um grupo de empresários mineiros, capitaneados pela Fiemg (Federação das Indústrias de Minas Gerais), o Minas pela Paz tem como principal objetivo proporcionar a inclusão do ex-detento no mercado de trabalho e na sociedade, reduzindo assim os índices de reincidência criminal. Para conseguir essa meta, o instituto fez uma parceria com 39 Apacs espalhadas por municípios pequenos e médios de Minas Gerais, que abrigam 2.600 internos.
“Acreditamos que a metodologia da Apac é o meio mais eficaz para promover a inclusão dos detentos, porque humaniza as prisões”, diz Pedrosa. A primeira instituição desse tipo surgiu em São Bernardo do Campo (SP), em 1972. Mas foi nos anos 1990 que as Apacs ganharam força e se disseminaram pelo Brasil: hoje, existem 50 unidades em funcionamento, 39 delas em Minas Gerais. “O que diferencia o sistema carcerário comum da Apac é que, nesta última, os recuperandos assumem tarefas de organização e disciplina”, diz Valdeci Antônio Ferreira, presidente da FBAC (Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados), que congrega todas as Apacs do Brasil. Não existem policiais ou agentes penitenciários: a segurança e a disciplina são feitas por funcionários e voluntários. Os detentos têm acesso a assistência médica, psicológica e jurídica, prestadas pela comunidade. Recebem ainda capacitação profissional em áreas como gastronomia, agricultura, serralheria e marcenaria.
É aí que entra a atuação do Minas pela Paz. “A proposta é ampliar o poder de ação das Apacs, trazendo conhecimento e tecnologia para os processos”, diz Pedrosa. Nessa tarefa, o instituto conta com a ajuda de entidades como Sesi e Senai, que ministram seus cursos dentro das unidades prisionais. A capacitação facilita a reentrada no mercado de trabalho e abre as portas para que eles se aventurem no empreendedorismo. “É muito diferente de um presídio”, diz Francisco, sentado no escritório de sua loja de calçados em Belo Horizonte. “Na Apac, você ganha uma segunda chance.”
Pela primeira vez na vida, Marcos*, 44 anos, está trabalhando. Há oito meses, ele abriu uma oficina para consertar artigos de couro, como sofás, bolsas e itens automotivos. Sua empresa, instalada em um município de 8 mil habitantes de Minas Gerais, fatura cerca de R$ 2 mil por mês. “É uma pena o cliente já ter levado o sofá Luís XV que eu estofei há poucos dias. Você ia ver a beleza que ficou”, diz, animado. Marcos cumpre pena em regime semiaberto na Apac de São João Del Rei (MG). Preso em 2009, foi condenado a 24 anos de prisão por tráfico, lavagem de dinheiro, formação de quadrilha e clonagem de veículos. Antes de ser transferido para a Apac, passou 16 anos em uma penitenciária na região metropolitana de Belo Horizonte. “Na prisão, é um tédio danado. Só tem faxina”, diz. Ao ser levado para a instituição de São João Del Rei, em 2015, começou a participar dos cursos promovidos pelo Minas pela Paz. “Tudo que eu sei hoje, eu aprendi na Apac”, diz. Foi lá que ele descobriu que era capaz de costurar qualquer coisa. “Foi por acaso, trabalhando nas oficinas de sapatos”, diz. “Eu tinha um dom e não sabia.”
Em oito meses de oficina, já quitou o empréstimo de R$ 12 mil feito por um cunhado — o dinheiro foi usado para comprar máquinas de costura, móveis e uma motocicleta. O veículo permite que ele percorra, em cinco minutos, o trajeto da Apac de São João Del Rei até sua oficina. “Assim aproveito melhor o tempo.”
Segundo Marcos, o fato de ser um ex-detento não afasta os clientes. “Mas vejo muito preconceito por aí. Ninguém dá um trampo para alguém que já esteve preso”, afirma. Segundo Pedrosa, do Minas pela Paz, o maior medo da sociedade é que o ex-detento possa repetir os delitos do passado. “Toda vez que o chefe, um colega ou um vizinho fica sabendo que a pessoa é um ex-presidiário, o preconceito ressurge”, afirma. “Mas o empreendedorismo possibilita que essa questão seja suavizada. É uma alternativa importante para diminuir o preconceito.”
Entre 2009 e 2016, o Minas pela Paz capacitou 4.212 pessoas e intermediou a entrada de 1.009 profissionais no mercado de trabalho — não existem dados sobre o número de empreendedores formados pelo programa. A metodologia das Apacs tem efeito comprovado sobre a reincidência criminal. Segundo o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, entre aqueles que cumprem pena em presídios comuns, o índice de reincidência é de 70%; já entre os egressos das Apacs, o porcentual cai para 15%. “Além disso, um preso na Apac custa três vezes menos do que um preso no sistema tradicional”, diz Ferreira, da FBAC.
Durante o período de 18 meses em que ficou na Apac de Sete Lagoas (MG), Pedro*, 26 anos, fez um curso profissionalizante de mecânica de automóveis e entrou na faculdade de Administração. Hoje, ele é dono de uma empresa que produz e comercializa cerca de 600 quilos de linguiça por mês. “Agora tudo que eu quero é fazer negócios”, afirma.
Sua primeira incursão no empreendedorismo aconteceu aos 19 anos, quando recebeu dos pais a incumbência de comandar um açougue em Sete Lagoas. Durante dois anos, ele tocou o negócio da família. Mas Pedro não estava satisfeito. Queria mais dinheiro. Para satisfazer seu desejo, começou a assaltar residências à mão armada. “Nunca usei drogas”, diz. “Gostava de ostentação, de sair na noite. Cheguei a ter quatro carros na garagem. Todos de luxo.”
Em 2013, assaltou um sítio próximo a Sete Lagoas. Com sua quadrinha, roubou R$ 300 mil em veículos, eletrônicos e joias. No dia seguinte, ao ouvir o noticiário, Pedro ficou preocupado: o sítio pertencia a uma personalidade conhecida no estado. Em três semanas, todo o bando foi preso. Pedro passou três anos na cadeia — metade desse tempo foi em uma penitenciária, e a outra metade em uma Apac, de onde saiu em novembro de 2015. “No presídio, ninguém pensa em nada, só em sair. Com o trabalho da Apac, você se sente valorizado. Isso muda o pensamento.”
Para Pedrosa, não existe emoção maior do que descobrir que um detento se transformou em um empreendedor bem-sucedido. “Esse trabalho de recuperação me transforma a cada dia”, diz. Ele lembra com satisfação casos como o de Tiago*, 52 anos, ex-traficante que vivia entrando e saindo das penitenciárias de Minas. Em 2011, depois de ser transferido para a Apac de Nova Lima (MG), seu comportamento mudou.
Tiago ficou encantado com o curso de gravação em madeira, metal e vidro. “Em poucos dias, já estava fazendo meus desenhos”, afirma. Em setembro do ano passado, depois de receber a liberdade condicional, abriu uma empresa de customização de artigos em vidro. São quadros, copos, luminárias e mesas de vidro estilizadas, que ele produz sob encomenda. Hoje, a empresa lucra cerca de R$ 1.500 por mês. Mas Tiago não acredita que o programa de recuperação seja o único responsável pela sua transformação. “É lógico que ser tratado com dignidade ajuda. Mas ninguém te convence de nada. A vontade de mudar está dentro da gente.” Caso o negócio continue crescendo, ele pensa em abrir uma unidade produtiva dentro de uma Apac.
Nesse tipo de arranjo, empresas podem organizar grupos de trabalho dentro dos presídios e, dessa maneira, receber incentivos fiscais. Do outro lado, os presos ganham capacitação e remissões em suas penas. Oferecer uma alternativa viável ao sistema prisional brasileiro é um dos objetivos da parceria entre o Minas pela Paz e as Apacs. Segundo os dados mais recentes do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias (Infopen), a população carcerária do país cresceu quase sete vezes entre 1990 e 2014 — no mesmo período, a população aumentou 40%. “Com o nosso trabalho, colaboramos para evitar a reincidência e oferecer alternativas de recuperação”, afirma Pedrosa. Para ele, é fundamental que o cidadão comum faça sua parte, combatendo o preconceito. “Perdoar os antigos erros faz parte de um processo, muitas vezes doloroso, de construção de uma nova sociedade.”
Minas pela Paz
O que é: instituto que tem como propósito proporcionar a inclusão de ex-condenados no mercado de trabalho e na sociedade, reduzindo assim os índices de reincidência criminal.
Fundação: 2007.
Onde atua: em 39 Apacs de Minas Gerais.
Número de internos impactados: 2.600.
Taxa de reincidência: apenas 15% dos internos voltam a cometer crimes
Fonte: “Pequenas empresas e grandes negócios”.
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