Há um novo esporte na academia, na imprensa e entre os intelectuais: explicar a ascensão do nacionalismo populista e do conservadorismo, que tem surpreendido nas urnas mundo afora. Pode escolher: Donald Trump, Brexit, Farc e até mesmo João Doria em São Paulo. Em todas essas votações, saiu vencedor o campo que se convencionou associar à “direita”. Em todas, o eleitorado se dividiu de modo apaixonado e, incentivada pelas redes sociais, a polarização política atingiu níveis jamais vistos. Nos Estados Unidos, ambos os lados trocaram a civilidade e o respeito mútuo por ira, agressividade e repulsa ao adversário. Política se tornou assunto proibido em ceias de Natal, festas familiares e reuniões corporativas. Com tantas democracias rachadas, houve até quem argumentasse que a própria democracia rachou e, diante dos desafios contemporâneos, não funciona mais.
Duas linhas de pensamento foram adotadas para explicar a ascensão do novo populismo. Há aqueles que chamam a atenção para a economia. Dizem que a globalização, embora tenha tirado centenas de milhões da pobreza, não entregou o que prometeu à classe média dos países ricos. A reação natural foi o apoio a quem prometia fechar fronteiras, com políticas protecionistas e anti-imigração. Há, do outro lado, os que preferem destacar a cultura. Sustentam que as sociedades ocidentais foram incapazes de integrar milhões de imigrantes na utopia multicultural do pós-guerra. Afirmam que as políticas de ação afirmativa e proteção a minorias tiveram efeitos colaterais indesejados, exacerbaram racismo, preconceito e ressentimento na “maioria silenciosa”. A reação natural foi então o repúdio a qualquer medida classificada como “politicamente correta” – e o apoio a líderes autoritários.
Há algo de verdadeiro em ambas as explicações. Mas nenhuma delas responde por que tais reações têm ocorrido de modo tão violento, nem por que a polarização só faz crescer. As redes sociais têm relevância nessa dinâmica. Primeiro, por contribuir para segregar a população em grupos homogêneos, onde divergências são combatidas com virulência. Segundo, por servir de veículo à disseminação de informações com viés partidário, não raro falsas, e também ao questionamento da imprensa profissional, que exerceu ao longo da história o papel de praça pública para o debate civilizado. Mas mesmo as redes não explicam tudo. Se catalisaram uma reação química explosiva, é porque os reagentes já estavam lá. Há fatores mais relevantes. “Se trouxermos a psicologia moral para a história e a acrescentarmos às demais explicações, é possível dar conselhos para reduzir a onda recente de conflitos”, escreveu o psicólogo Jonathan Haidt, da Universidade de Nova York, antes mesmo da vitória de Trump. Ele expõe suas ideias em “The righteous mind” (algo como “A mente moral”), lançado há meia década. Haidt enxerga diferenças profundas na forma como os dilemas morais se apresentam à direita e à esquerda (nos Estados Unidos, a “conservadores” e “liberais”).
Na narrativa esquerdista, a política deve corrigir injustiças sociais, combater desigualdades, miséria e opressão. É uma moral que se resume a duas dimensões: justiça (para todos) e liberdade (da opressão). Na narrativa conservadora, a política deve resgatar o país das amarras burocráticas, da subversão dos valores religiosos, punir os criminosos, retirar privilégios distribuídos a quem não merece, pôr ênfase na estrutura familiar, cuidar dos símbolos nacionais e exercer o poder externo, quando necessário, por meio das armas. É uma moral que se irradia por múltiplas dimensões: justiça (para quem merece), liberdade (do governo), lealdade (à nação), autoridade (da tradição e da família) e sacralidade (religiosa). Como a paleta moral dos conservadores é mais ampla, diz Haidt, eles levam vantagem ao fazer política. “Os republicanos entendem a psicologia moral. Os democratas não”, escreve. “Os republicanos já perceberam há muito tempo que o elefante (a intuição) é quem comanda o comportamento político, não o cornaca (a razão) – e eles sabem como elefantes funcionam.”
É uma ótima explicação para a eleição de Trump. E também para a dificuldade de cada lado para ouvir e entender os argumentos do outro. “Os obstáculos à empatia não são simétricos”, diz Haidt. Nos Estados Unidos, os esquerdistas resistem a compreender a moral da direita, simplesmente porque não valorizam na mesma medida as dimensões de autoridade, lealdade e sacralidade. No Brasil, a gama moral da esquerda talvez se estenda ao campo do sagrado – basta lembrar o culto a Getúlio ou Lula – e embasa uma narrativa de inegável sucesso num país de crônica desigualdade social. Mesmo assim, à medida que a narrativa conservadora ganha corpo também por aqui, a polarização crescerá ainda mais, e o diálogo entre os rivais será um desafio ainda mais complexo.
Fonte: “Época”, 26 de fevereiro de 2017.
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