O debate com os presidenciáveis promovido pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), em Brasília, apesar de referências a apagões feitas pelos três principais candidatos à Presidência da República, foi muito aceso. E apesar de pequenas estocadas e do uso de abordagens diferentes entre eles para expressar o mesmo corpo de ideias, o que faz parte do aparato para reforço de identidade, registraram-se saudáveis convergências. A visão comum, por exemplo, sobre a necessidade de um choque de planejamento e gestão na administração federal (José Serra), a adoção da meritocracia e do profissionalismo no serviço público (Dilma Rousseff) e o argumento de que o apagão de recursos humanos vivido pelo País está a exigir a ampliação da base de conhecimento e de tecnologia (Marina Silva). A estreita relação entre as três sugestões indica preocupação com a eficiência do Estado brasileiro, cuja performance ao longo dos últimos governos se tem mostrado defasada em relação ao escopo de modernização que se pode distinguir em muitos setores da vida produtiva.
Quem se der ao exercício de contemplar a fisionomia nacional vai deparar com imensos contrastes. Há ilhas de excelência no meio de territórios feudais; há avanços de tecnologia de ponta ao lado de muralhas do passado; na própria seara da administração pública, uma burocracia altamente profissionalizada convive com largas fatias do mandonismo político, a denotar o esforço de uns para olhar adiante sob o solavanco de outros que teimam em olhar para trás. Por conseguinte, se há uma reforma que pode ser chamada de mãe de todas as outras, antes mesmo da área política, como normalmente se tem propagado, é a reforma do modelo de operação do Estado. Redimensionar a estrutura do Estado, conferindo-lhe dimensão adequada para a obtenção de eficácia, significa mudar comportamentos tradicionais, racionalizar a estrutura de autoridade, reformular métodos e, ainda, substituir critérios subjetivos e ancorados no fisiologismo por sistemas de desempenho.
A meritocracia é o instrumento adequado para oxigenar, qualificar e expandir a produtividade na administração. Esse conceito tem sido recorrente no discurso de tucanos como Serra e Aécio Neves, mas o próprio PT, nas diretrizes do programa de governo de sua candidata, defende o serviço público de qualidade, “submetido a processos meritocráticos de seleção e promoção”. Saudável é essa referência, porquanto se sabe da prática que se adota para preenchimento de cargos públicos. As levas de indicações partidárias acabam contribuindo para inchar estruturas, expandir a inércia e as teias de interesses escusos. A proposta começa com a substituição de milhares de cargos comissionados por uma carreira de Estado, à semelhança do que existe em sistemas parlamentaristas, nos quais quadros permanentes, qualificados e motivados são imunes às crises políticas. Mudam-se os dirigentes, mas as equipes continuam comandando a gestão pública.
Os males da administração pública advêm da errática mentalidade de seus ocupantes, para quem o modus operandi deve espelhar a visão (caolha ou fisiológica), e não as necessidades sociais. Consideram-se donos do pedaço que lhes coube na partilha do poder, não se sujeitando à ordem do mercado nem às leis da livre concorrência, como ocorre na iniciativa privada. Da burocracia comprometida com o mérito deverão ser cobrados resultados dentro de metas preestabelecidas, reconhecendo-se as qualidades de cada perfil e implantando um modelo de premiação e promoção para motivar as equipes. Não será tarefa fácil alterar a fisionomia da administração pública. O atual sistema de loteamento faz parte da velha cultura patrimonialista, que permeia as três instâncias federativas. Parte-se do princípio de que o governante, ao chegar ao poder, como forma de garantir as condições de governabilidade, terá de repartir espaços de Ministérios e autarquias pelos partidos, de acordo com o tamanho e influência de cada ente. Como mudar tal sistemática sem ferir brios e perder apoio no Congresso? Como acabar com o loteamento político de cargos, como defende José Serra?
A resposta a essa questão envolve uma hipótese levantada por Marina Silva, que pode ser traduzida na falta de recursos humanos adequados para tornar o Estado eficiente. Esse parece ser o cerne do problema. Sem quadros, qualquer reforma fenecerá. O fortalecimento das áreas de formação, reciclagem e aperfeiçoamento de recursos humanos, voltadas para a operação do Estado, deve ser prioridade. Essas ideias parecem consensuais não apenas entre os três pré-candidatos, mas entre grupos de bom senso da própria administração pública. E por que não se aplicam? Por assimetria à lógica da organização do poder no Brasil. Como se sabe, quem dá o tom é a orquestra patrimonialista, para onde os integrantes são indicados pelos senhores do mando. O círculo vicioso da política gira mudando figuras e mandos, mas não o sistema. Há poucas brechas para se avançar. Mas é possível, sob pressão intensa da sociedade, fazer fluir oxigênio novo. Quando ideias transformadas em projetos chegam ao Congresso sob o empuxo social, ganham repercussão e acabam entrando em pauta.
Foi assim que ocorreu com situações que caracterizam o ingresso do Brasil na modernidade: a pesquisa com células-tronco, a aprovação do Projeto Ficha Limpa e a Lei Maria da Penha, de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras. Acontece que assuntos áridos como as reformas do Estado, tributária e política só vão adiante caso recebam a atenção do centro do poder. Ou mobilizem os partidos. Só dessa forma a roda viciosa da política poderá jogar a reforma do Estado na mesa do mandatário. De qualquer modo, já há motivo para o primeiro regozijo: compromisso assumido no palco eleitoral pelos pré-candidatos acena com a viabilidade de se mexer na estrutura do Estado. Viva!
(“O Estado de S. Paulo” – 30/05/2010)
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