O confronto entre Legislativo e Judiciário foi marcado esta semana por uma forte e coordenada ofensiva do legislador. A primeira medida foi a aprovação, pelo Senado, do projeto de lei sobre abuso de autoridade. O Brasil de fato precisa de uma lei de abuso de autoridade mais eficaz do que a editada pelos militares, até porque nossas autoridades têm uma enorme dificuldade de respeitar os cidadãos, especialmente os mais pobres.
Embora o substitutivo apresentado pelo senador Roberto Requião (PMDB) tenha eliminado alguns dispositivos que criminalizavam parte da atividade de operadores do direito, restaram ainda algumas armadilhas. A maior delas é o emprego excessivo de termos abertos, como decretar prisão “manifestamente ilegal” ou deixar de conceder habeas corpus “manifestamente cabível”. Afinal, o que é manifestamente ilegal ou cabível?
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Como salienta minha colega Heloisa Estellita, o que ocorrerá se um tribunal conceder uma ordem de habeas corpus, por entender que o juiz de primeira instância decretou uma prisão ou deixou de conceder um relaxamento de prisão manifestamente ilegal ou cabível? Deverá o Ministério Público pedir a prisão do referido juiz? Duas podem ser as consequências: o acovardamento dos aplicadores da lei ou, em sentido oposto, tribunais simplesmente deixarão de rever as decisões de primeiro grau para não criminalizar a conduta dos juízes.
Também preocupa o artigo 13, III, que coloca em risco o próprio instituto da delação premiada. Se não é adequado que juízes usem da prisão provisória para obter delação, a criminalização de juízes não parece ser o caminho correto. Há recursos jurisdicionais para resolver o problema.
O segundo ataque dos senadores foi direcionado diretamente ao Supremo. Coagido o Judiciário, com a aprovação do abuso de autoridade, aprovou-se a drástica redução do foro privilegiado. Essa medida, à primeira vista, vai ao encontro do clamor por mais igualdade e necessidade de reduzir as atribuições do Supremo, alinhando o nosso sistema de responsabilização de autoridades com o modelo prevalente em grande parte das democracias ocidentais. O diabo, no entanto, está no curto prazo.
Se o projeto for aprovado, implicará na remessa imediata de todos os casos de parlamentares e ministros para a primeira instância. Com isso os legisladores vislumbram a possibilidade de postergar uma eventual condenação por órgão colegiado. Isso viabilizaria participarem do próximo pleito eleitoral. Trata-se de uma estratégia de sobrevivência imediata, assim como de uma tentativa de impor uma derrota institucional ao Supremo, retirando de suas mãos o poder de vida ou morte sobre os membros do Parlamento.
É uma jogada arriscada e de efeitos imprevisíveis. Ao se pulverizar a jurisdição sobre crimes cometidos por autoridades teremos as mais variadas respostas por parte das diversas jurisdições espalhadas pelo país. Veremos ações frívolas, ameaçando mandatos democráticos, jurisdições lenientes, onde é clara a submissão dos agentes da lei ao corpo político, assim como jurisdições autônomas e rigorosas no exercício da aplicação da lei. Esse será o custo a ser pago para pôr fim a um sistema injustificável numa república.
A queda de braço não termina aqui. Se aprovadas, caberá ao Supremo dar a última palavra sobre a sua validade.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 29/04/2017
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